quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Letrado 2: Nina Rodrigues e o negro no Brasil



Capa do livro, Os Africanos no Brasil, edição de 2008.

Hoje apresentamos uma resenha de duas obras fundamentais para se entender a formação negra do Brasil e o pensamento do médico maranhense Nina Rodrigues, que publicou os clássicos O animinismo fetichista dos negros baianos e Os Africanos no Brasil. Caso o leitor tenha curiosidade de saber mais, deixo abaixo o link de um artigo escrito por mim, sobre o pensamento de Nina Rodrigues, e publicado recentemente.
  
Parece unânime entre os estudiosos defender que, se Nina Rodrigues não foi o primeiro no Brasil a estudar o negro, foi pelo menos aquele que com profundidade o elegeu como objeto de ciência. De fato, a questão central dos trabalhos deste médico dizia respeito em analisar a influência da “cultura” e da psicologia negras na formação da nacionalidade brasileira. O negro no Brasil é, assim, o elemento ou objeto central da maioria de seus trabalhos, como fez no O animismo fetichista e no livro Os Africanos no Brasil. Este último é para muitos estudiosos uma das obras principais do autor, pela profundidade de sua análise e pela descrição que faz da cultura dos negros africanos trazidos para o Brasil.
O livro, O Animismo Fetichista dos Negros Baianos reúne cinco artigos do autor, publicados originalmente na Revista Brazileira entre 1896 e 1897, os quatro primeiros sob o mesmo título e um quinto chamado Ilusões da catequese no Brasil que, juntos, foram publicados mais tarde, em 1900, na forma de livro, em francês, com o título L'animisme fetichiste des nègres de Bahia. Em 1935, Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues, reuniu os artigos publicados na Revista Brazileira e publicou-os em livro, atualizando a grafia. A obra foi reeditada nas comemorações do centenário da morte do Médico da Faculdade de Medicina da Bahia.
A obra de Nina Rodrigues, O Animismo Fetichista, é resultado do esforço do autor para empreender um estudo descritivo das práticas religiosas dos negros baianos no final do século XIX. Mas, não pode se resumir a isso. Médico, agindo como etnólogo, e convicto de que seu método científico era o mais adequado para analisar e descrever as práticas religiosas dos negros baianos, adotou uma postura de observador, indo pessoalmente aos cultos, assistindo-os e anotando em seu diário as observações feitas. Ajudado por informantes, ele compôs um quadro vivo das práticas cotidianas dos cultos religiosos dos negros. Mas, embora sempre esteja defendendo a sua pretensa neutralidade científica e, da mesma forma, descreva os cultos, documentando-os para a posteridade, sempre adota uma postura analítica. No O Animismo, por exemplo, tenta explicar a possessão como um caso sui generis de histeria dos negros e dos povos mestiços como uma sobrevivência hereditária do atraso da evolução de sua raça, ainda que não conclua seguramente. Aqui, a postura do etnólogo se transforma na postura do médico, que tenta explicar o “sobrenatural”, como uma “doença” perfeitamente explicável e compreensiva. Desta forma, o relato de Nina Rodrigues pretensamente científico, “neutro”, “objetivo” e que busca a “verdade”, não é, absolutamente, inocente, como um leitor desavisado poderia imaginar.
            No O Animismo Fetichista, mas isso ocorre em toda a sua obra, embora adote uma postura que nos pareça muitas vezes valorizar as tradições, costumes e cultos religiosos dos negros e mestiços, chegando mesmo em alguns casos a defender a liberdade dos cultos “africanos” contra os ataques da imprensa baiana, Nina Rodrigues está sempre buscando comprovar a sua tese de que os povos mestiços seriam mais propensos ao desequilíbrio e, portanto, fadados às degenerações. Pela miscigenação evidente, finalmente, a nação estaria condenada ao fracasso. Neste último caso, também parece haver contradições, pois em alguns momentos fica a impressão de que, dependendo das nações negras que aqui aportaram, se mais ou menos evoluídas, seria possível ao país, ainda que de forma mais lenta, atingir a civilização, como faz no livro Os africanos do Brasil. Esse pensamento advém da ideia de que mesmo entre as “raças inferiores” há graus de evolução desiguais.
            O pensamento de Nina Rodrigues não é fácil de ser apreendido em função de seus paradoxos e contradições que só uma leitura atenta de seus trabalhos pode revelar. De um lado, não se pode negar que ele aceitou os dogmas e as teses do darwinismo social e da antropologia criminal, por outro lado, adotou-as em relação à realidade brasileira fazendo muitas vezes uma releitura das teses raciais chegando mesmo, em alguns casos, a contestá-las com base em uma pesquisa empírica (pesquisa científica).
            Sem dúvida, a grande questão de Nina Rodrigues no O Animismo Fetichista e em muitas obras escritas por ele, é o negro, isto é, o seu grande problema é saber qual foi a influência ou contribuição social exercida pelas raças negras no Brasil, tendo em mente a formação de nossa nacionalidade. O que estava em jogo era, também, avaliar o destino do país com base em sua formação racial. O país estava em vias de formação e não constituía uma nação acabada. Era necessário, pois, avaliar o valor de seu povo e se possível intervir na realidade para ajudá-lo em sua caminhada. Esse era o papel do médico Nina Rodrigues. Como etnólogo cabia a análise, o que faz muito bem em seus trabalhos.
Ao contrário de O animismo, a obra Os africanos do Brasil está dividida em nove capítulos e uma introdução. Reúne artigos do autor publicados em importantes periódicos da época, entre os anos finais do século XIX e os primeiros anos do século XX, com trabalhos até então inéditos. A meu ver, embora em toda a obra uma das preocupações centrais do autor seja descrever e analisar a procedência dos negros africanos para o Brasil com o tráfico negreiro, podemos dividi-la em duas partes: nos quatro primeiros capítulos a preocupação central é analisar a procedência dos negros africanos trazidos para o Brasil durante os três séculos da escravidão; nos cinco capítulos seguintes, embora esta preocupação não tenha sido deixada de lado, a questão principal centra-se sobre a análise das sobrevivências africanas na “cultura” brasileira e, sobretudo, baiana.
Em toda a obra, isto é, nas “duas partes”, o fio condutor da análise é saber, partindo da procedência dos negros africanos e das sobrevivências de sua cultura na sociedade brasileira, o grau de contribuição dos povos negros para a formação da nacionalidade brasileira. Saber, por exemplo, sobre a procedência africana dos negros é importante no sentido de que, dependendo do “grau de evolução” de “sua civilização” na África, a sua contribuição à sociedade brasileira é positiva ou negativa. Quanto “mais inferior” culturalmente é um povo africano trazido para o Brasil, maiores serão as dificuldades de nossa nação “evoluir” segundo o padrão europeu, uma vez que, entre os negros africanos, o médico estabelece um grau de hierarquia em sua “evolução biológica e cultural”, não negando a alguns povos africanos a possibilidade de atingir a civilização, embora de forma mais lenta que o “homem branco”, o que é surpreendente, tendo em vista o seu referencial teórico biologizante, considerando que as “raças” estão em estágios de evolução desiguais e que os negros são inferiores em relação ao europeu.
Nina Rodrigues, indiscutivelmente, foi aquele que na virada do século XIX para o século XX elegeu como objeto de investigação o negro brasileiro. Colocar o problema do negro como central para analisar a formação da nacionalidade brasileira eis o seu projeto de ciência. Os Livros O Animismo fetichista e Os Africanos do Brasil não fogem ao projeto. Nestas obras, mais ainda no Os africanos do Brasil, empreende um esforço etnográfico para compor um amplo quadro de informações e dados a respeito das contribuições culturais das comunidades negras para o Brasil.
Não podemos deixar de lado, ao analisar a sua obra, e não só os livros em questão, o contexto e as condições históricas e sociais de sua produção. Ninguém contesta que o médico maranhense, embora tenha produzido um pensamento original sobre a formação da nacionalidade brasileira e a influência do negro em sua constituição, foi fortemente influenciado pelas teorias de base racial vigentes em seu tempo. Formado em um ambiente institucional, num momento em que as teorias racistas penetravam com força no Brasil, Nina Rodrigues foi fortemente influenciado por elas. Foram seus mestres, Comte, Darwin , Cesari Lombroso, Enrico Feri e outros. Cabe, no entanto, não exagerar. O Médico da faculdade da Bahia, assim como muitos intelectuais do período, não adotou as ideias de seus mestres de forma mecânica. Pelo contrário, produziu um pensamento original que, embora aceite as ideias de desigualdade na evolução das “raças” humanas, apresentava soluções para os “povos” ditos atrasados, como defende Lilian Moritz (1993).
Por outro lado, de fato, Nina Rodrigues produz um discurso sobre o negro brasileiro pautado pelo paradigma da determinação biológica na evolução das raças, aceitado a ideia da existência de raças e graus de evolução e desigualdades dentro de uma mesma “raça”, defendendo assim, no entanto, que há estágios de evolução em que um povo ou mesmo uma nação pode atingir a civilização mais rapidamente do que outro, não sendo possível, no entanto, medir isso.
A todo o momento esclarece que o seu discurso é “científico”, portanto, “objetivo”, e “neutro”. Esse é o paradigma de ciência positiva da época, cujo modelo é dada pelo método das ciências naturais. Adaptado às ciências humanas, considerava possível a produção da verdade com base em provas documentais “objetivas” e isentas de subjetividades. No entanto, todo o seu discurso está pautado por contradições quase insolúveis. Embora defenda que seu pensamento é neutro, sempre está “provando”, em seus estudos, a “inferioridade” da raça negra e implicitamente mostrando que, da nossa formação e colonização africana advém o nosso atraso como nação. Atraso que não significa uma condenação, pois podemos, a seus olhos, avançar na senda do progresso que, dependendo das raças negras aqui introduzidas com o tráfico negreiro, o progresso e a civilização seriam atingidas em graus diferentes. Tal é o objeto de Os Africanos no Brasil: descobrir que raças africanas aportaram aqui e qual o grau de contribuição cultural que nos legaram.
Outra contradição do autor diz respeito ao fato de dar voz aos negros no Brasil e defender que eles têm de se manifestar e manter seus cultos e tradições ao mesmo tempo em que os considerava, como já ressaltamos, inferiores, produto de sua “raça”. Portanto, Nina Rodrigues filtra o seu objeto de estudo, tendo como lente o seu referencial de base racial, advindo da biologia. Na sua narrativa, muitas vezes, pela técnica linguística utilizada e pela forma de narrar, leva-nos a acreditar que ele está valorizando a contribuição do negro africano na formação de nossa nacionalidade, mas, por outro lado, sempre conclui mostrando a inferioridade desta contribuição.
Tal é sua análise sobre os cultos religiosos dos negros e mestiços ao defender que o africano, com o seu fetichismo, é incapaz de assimilar a abstração da religião católica, ocorrendo, pelo menos na Bahia, que o catolicismo receba influência dos cultos de raiz africana. Quando se refere à língua do negro, também, a intenção, parece ser demonstrar a simplicidade de sua estrutura e, por último, quando aborda a arte dos africanos demonstra que, embora revele o grau de civilização ou evolução de alguns povos, ela é “primitiva” e está em um estágio atrasado em relação à arte de outros povos.

Link: texto completo: http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/article/view/98
  

← ANTERIOR PROXIMA → INICIO

Um comentário:

Deixe aqui seu comentário, opinião e sugestões. Um forte abraço!