terça-feira, 7 de janeiro de 2014

NUNCA É TARDE PARA CHORAR II de parte I



 FOLHETIM DE GABRIEL ARCANJO

Em pouco tempo, “a bomba estourou”, a “rapariga” estava grávida, grávida de José, e não demorou muito para a esposa vir a saber das “safadezas” do marido infiel (mulher casada naquele tempo tinha que aceitar o “chifre” numa boa, não podia largar o marido, pois pesado estigma social se abatia sobre a mulher “largada do marido”; era “rapariga”, “amásia”, “puta”, não mereceria o respeito e a estima da sociedade). Assim, em silêncio e sem “bater de frente”, Dona Júlia Alves remoia a raiva e a revolta, arquitetando vingar-se de José, seu marido infiel. Devia perguntar-se em seu intimo: “-Como é que eu vou me vingar desde cachorro?” (aqueles eram tempos de mudança, e trair a esposa já não era algo tão “natural” e socialmente aceitável como antes). Para piorar a situação, dona Júlia também descobriu-se grávida de José, “aquele cachorro! Ainda veio me embarrigar, igual fez com a cunhã dele! Pois ele que vá procurar aquela rapariga!” Revoltada, a medida em que a barriga crescia, a esposa traída tramava uma vingança contra o marido “garanhão”, negava-lhe sexo, torcia-lhe a cara, e deixava de fazer os afazeres da casa. “- Deixa-te estar canalha, que tu vai me pagar!”  
        Em poucos meses, nascia o rebento do casal: uma menina branquinha, de lindos e penetrantes olhos azuis (olhos de um azul oceânico), que eles deram o nome de Maria Alves de Araújo (fora nesta ocasião que nossa personagem principal veio ao mundo). Julia não perdoava as escapadas de José. E, querendo vingança, num gesto covarde, pegou a menina, sua filha e de seu marido, e deu a criança para um amigo da família criar: “-Eu é que não vou criar a filha daquele ordinário!” Aquela fora uma vingança torpe e cruel. José Alves nunca mais foi o mesmo depois do ocorrido. Vivia cabisbaixo, pelos cantos, largou da amasia, mas nunca mais se deitou confortavelmente como homem no leito conjugal sem pensar na covardia da esposa contra a sua filhinha inocente. -Eu é que num quero mais nada com esta serpente!, pensava ele, com nojo do contato com o corpo asqueroso da esposa desalmada! Dizem que depois de anos, conseguiu fazer as pazes com a mulher, e teve com ela mais um filho, a quem deram o nome de Francisco, que cuidaram calorosamente. Mas a ferida estava aberta, e a família viveria seus dias atormentada pelo fantasma da menininha loira e linda abandonada pela mãe (menina de lindos olhos de um azul oceânico).
        O outro filho de José Alves com a cabocla Maria fora criado não se sabe como nem por quem, passando fome e trabalhando de sol a sol em terras estranhas, pois as famílias de José e Júlia – gente “de bem” -, que não queria ficar “mal-falada”, “correu com a família daquela “cunhã corruptora de lares, e ladra dos maridos alheios” que morava em suas terras. O filho de José fora morar com a mãe em terras de seu primo, o coronel Marinho, lá na Mina. Mesmo com um filho, ela ainda era fogosa, e a gravidez não lhe tirou de todo a formosura. Em pouco tempo ela perderia a beleza, envelhecida precocemente na labuta diária da fazenda. Mas por hora, ela era bela, e o coronel lhe visitava a alcova uma vez por mês. Maria deu seu sobrenome ao menino, e o primeiro nome do pai: Francisco de Jesus (pois por ele só mesmo Jesus, por que mais ninguém neste mundo havia).   
        Maria Alves, a menina loirinha, de lindos e penetrantes olhos azuis, fora criada a pão e água pelo pai adotivo, sem conhecer o luxo e a riqueza que seus primos e irmãos conheciam.  Passava fome e vestia molambos bem ao lado da família fausta. Disse-me ela, certa vez, antes de perder a sanidade, que até os doze anos de idade possuía somente uma calcinha para se vestir, e que quando sujava, tinha que ficar escondida no mato, até o sol poder secá-la para que ela pudesse vestir-se novamente e sair em público. Falou-me que passou muita fome, comia rapadura com feijão quase todo dia, e ouvia o pai adotivo maldizer-se das “despesas” que ela - a “muleca sem vergonha” - estaria lhe dando: “- Uma diaba desta, come de minha rapadura e do meu feijão, parece até uma ferida braba! Onde é que eu tava com a cabeça quando aceitei te criar, muleca safada? E vez ou outra Antonio Soares desabafava as mágoas da vida nas costas da filha adotiva que lhe comia o feijão e a rapadura de maneira “dispendiosa”: “-Toma cunhã sem vergonha”, e desferia várias lapadas de corda ou de chinelo nas costas da criança infeliz. O pai adotivo era rapaz-velho, nunca se casara, e vivia solitariamente sendo ridicularizado por seus amigos e parentes por nunca ter conhecido mulher. “-Ora, mas o cumpade Antõe tem cabra, tem vaca e tem jumenta que lhe podiam muito bem quebrar o jejum! Não é compade Antõe?, diziam os amigos com ar zombeteiro, e Antonio fingia se zangar: “-O que é que vocês tem com isso, magote de bestas?” Antonio, na realidade, por ser de família “rica”, não quis se casar com “qualquer uma”, passou pela vida esperando a “mulher  ideal”, que tivesse terras, dinheiro e um sobrenome importante para vir se somar ao já minguado patrimônio de sua família. Sua mãe pessoalmente, quando Antonio era pixote botou pra correr de sua casa algumas pretendentes do filho: “-São todas umas cunhãs sem eira nem beira! Filho meu não tem chamego com qualquer uma não!” E o rapaz ficou tão traumatizado que nunca mais procurou se aproximar de mulher nenhuma. Talvez conhecesse mesmo o amor das cabras de seu curral, mas quem sabe?...
Certa vez, na calada da noite, nas novenas de janeiro dos anos 30, foi ele com um primo na zona da cidade, no famoso cabaré do Breguedofe, disposto a pagar pelo sexo de uma “mulher de vida fácil”. Não deu certo: a mãe, devota de São Sebastião, soube da “heresia” de Antonio, e alertada pelas mexeriqueiras comadres que moravam lá perto, mandou o pai tirar o rapaz de cima da meretriz debaixo de cinturão. Antonio em riste, viu a estrovenga amolecer ao sentir nas costas a fivela do cinto de couro-cru do pai furioso! Foi a maior vergonha que o rapaz passou na vida, levado para casa debaixo de pêia aos olhos de todos os frequentadores da Igreja matriz,  e do cabaré! Que vergonha! -Tu vai se confessar com o padre Gonçalo, cabra safado! tá carregado de pecado! Antonio não perdoou o pai. A maioria dos pais ou irmãos mais velhos na Ipu da época levava o filho adolescente para “provar que era macho quebrando o cabresto” com uma “mulher de vida fácil” no cabaré. O pai de Antonio fez o contrário. – Que gosto tem mulher? Pensava ele, vez ou outra, imaginando como seria se seu pai não tivesse interrompido sua aventura sexual, 30 anos antes! Desde então ele nunca mais se animou por mulher nenhuma. Sentia ao se aproximar das fêmeas, grande aflição que lhe abatia o peito, as pernas lhe tremiam, e ele suava frio! - Será veado? Perguntavam os fofoqueiros, e Antonio fingia não ouvir. - Quem precisa de mulher? Eu tenho as minhas ovelhas! Respondia em surdina, serrando os dentes e fitando o vazio do infinito, como um eunuco chinês indiferente ao amor.
        Já a filha adotiva, aos 13 anos de idade passou a despertar a atenção dos homens, tornara-se da noite para o dia uma mulher belíssima, de lindos olhos azuis (de um azul oceânico) e de provocante corpo carnudo! Certa feita, Maria fora tomar banho no açude da fazenda da família. Era uma manhã ensolarada, os pássaros cantavam, o vento corria, e nas moitas Joaquim Catunda, capanga de Antonio Soares, fazia com as mãos o que a mente só imaginava: Ai, ai, ai, ai Maria. Maria despia-se de seu vestido florido, para tomar banho no açude. Os seios eram melões, o colo era um jasmim. Ai, ai, Maria! A água lhe corria o corpo, como uma carícia, como um convite, e o vento lhe beijava a nuca, como um amante. Ai, ai, Maria! E Joaquim arriou as calças! Tirou a camisa de algodãozinho! Perdeu toda a compostura. Ai, ai Maria! Não havia ninguém para lhe segurar! Virou animal, correu das moitas, como um cão no cio em noite de lua cheia. Era um animal. Um animal no cio! Se soubesse ler, e tivesse a informação de que os homens teriam evoluído dos macacos, Joaquim hora haveria de concordar! Ele era um animal. Era a prova viva da teoria de Darwin. Viu a si mesmo nu, com o membro hediondo em punho, um leão no pasto, um cão no cio, um cavalo a viçar! Vem cá égua sem vergonha! E se atirou nas águas, atrás de Maria Alves, que só o viu quando era tarde demais. Era tarde para escapar de suas mãos de vaqueiro (mãos acostumadas a derrubar boi brabo no pasto). Era tarde para nadar para a outra margem. Era tarde! E quando quis correr Maria se viu aluída do solo pelos braços potentes de seu agressor. - Não corre não, égua safada! Seu corpo era esmagado pelo abraço de uma sucuri, e ela sentia por entre as pernas o calor viril de um australopithecus! Não teve forças para lutar depois que o estuprador lhe aplicou dois tapas possantes no rosto que lhe arrancaram sangue das ventas. - É assim que homi faz! Num é isso qui tu quer, cunhã sem vergonha? Maria viu-se dominada, rendida, violada, atirada ao solo, na lama do açude, por entre o capinzal, sem nada poder fazer, sem ter por quem gritar! Só Deus para lhe valer naquela hora. Mas Deus não estava ali, só o animal monstruoso de abraço de sucuri e olhos de gavião! E o sangue lhe correu farto por entre as pernas, era o sangue de sua desgraça! Só os sapos na lagoa, as andorinhas no céu, e o azul infinito do horizonte foram testemunhas. Era tarde. Era muito tarde! Mas a vida mal começava...


Continua...        
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