terça-feira, 21 de janeiro de 2014

NUNCA É TARDE PARA CHORAR II de parte II



  FOLHETIM DE GABRIEL ARCANJO

A justiça dos costumes

Atado ao pescoço e pelas mãos numa corda que se prendia à sela da montaria de um dos três policiais, e acompanhado de perto pela escolta sinistra dos homens do coronel Manoel Marinho, Joaquim Catunda seguiu na direção do Ipu para enfrentar julgamento. Estava visivelmente arrependido. “- Tu inda vai, safado, arrancar cabaço de moça donzela?” E foi neste passo tardo, sôfrego, e ao mesmo tempo lento que a cidade fora acordada na antemanhã do dia seguinte, quando a tropa de oito homens escoltava o infeliz moribundo. Era Joaquim Catunda, agregado do coronel Antonio Soares, sendo exibido nas ruas da cidade como um troféu pelos homens do coronel Marinho. Seu corpo martirizado, com olhos inchados, quase não se deixou reconhecer: “- Negrada, é o disgraçado do Joaquim! Mata esta peste!” Fora sua sina reviver, em cores vivas e fortes, 52 anos após a abolição da escravatura, a triste sina do flagelo de sua gente.
        Naquela manhã seca de setembro, debaixo do chicote de Sete Mortes a população da cidade do Ipu, que até então nutria ódio profundo pelo estuprador, deixou de lado este sentimento para sentir por ele certa piedade. Piedade se sente pelos que sofrem castigos vorazes! Pelos que apanham de chibata! Pelos que morrem a morte dos santos e dos mártires! De cima de seu cavalo negro o assassino Sete Mortes dá uma ordem direta a seus cabras, “- Metam a chibata!”, e até a polícia obedece: “- Já chega, bota ele na carroça, e leva pra cadeia!” disse o delegado, Valdemar Feitosa.
A cadeia do Ipu havia sido concluída há cerca de três anos, pelos trabalhadores da seca de 1932, na gestão do então prefeito Joaquim de Oliveira Lima. Possuía ela paredes grossas e muros altos, tão altos que dificilmente um homem que se atirasse ao chão de sua cumeeira poderia escapar ileso de tão alta queda. Distante da sede da povoação, a cadeia do Ipu parecia uma sentinela em vigília atenta sobre a população paupérrima e perigosa do Alto dos Quatorze, localizada ao sul da cidade. Suas muralhas eram imponentes, inexpugnáveis, lembrando mesmo a proeminência dos casarões dos homens mais poderosos da região, como a residência do coronel Thomaz Corrêa, ou mesmo o palacete do finado Senador Pompeu, em Sobral.
Logo que soube que seus homens haviam capturado o estuprador, Manoel Marinho desceu de seu sobrado, para ir, com mais cinquenta agregados, à cadeia da cidade. O boato da captura correu a cidade e a feira de quinta se desfez, pois todos queriam ver o infeliz prisioneiro. O coronel gostou quando viu a multidão que se formou diante da porta da delegacia. Sentiu-se um titã invencível quando de sua montaria ergueu a mão direita pedindo silêncio e proferiu inflamado discurso: “- Este cabra safado vai pagar pelo que fez! Ele vai saber o que é que acontece com cabra que mexe com moça que é protegida pelo Coronel Antonio Manoel Marinho de Sousa! A multidão deu vivas. Empolgado, o coronel adentrou o estabelecimento com o chicote em uma das mãos e o revolver na outra. A cada passo sentia-se a encarnação da justiça. Os policiais arredaram caminho paralisados pela hercúlea figura do titã do sertão.” - Sim, seus fela-da-puta, saiam da frente!” No tempo de meu pai e de meu avô, eram os Melos, os Marinhos, os Martins e os Aragão que mandavam no Ipu! Agora estes policiaiszinhos de merda querem lhe dizer o que que é certo e o que que é errado! Não se pode nem mais manter uns cabras-valentes abrigados em suas terras, que a polícia vivia querendo prendê-los! Seus felá-das-puta, saiam da frente!” Este caboco vai pagar pelo que fez!”
Sacou do revolver, deu dois tiros para o alto, instigando ainda mais o furor da multidão espavorida, e adentrou a delegacia (que policial seria louco o bastante para tentar barrar a marcha do Coronel Marinho?). Desapareceu nos corredores da cadeia com seus cabras, em meio a três policiais atônitos, um escrivão impotente e um delegado complacente. De dentro do prédio ouviram-se gritos desesperados e juras de maldição. Vários tiros foram disparados, um cão correu ao terreiro, os pássaros dispararam em revoada, em seguida fez-se um silêncio enlouquecedor, seguido por um berro que parecia saído das masmorras do Inferno: “-Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiii” e fez-se silêncio novamente. Um silêncio de morte. Ouviram-se passos lentos, de botas de couro, com o tilintar de esporas de metal tinindo no chão.
A porta de ferro da cadeia abriu-se. Primeiro saiu Sete Mortes e seus homens, todos bramindo facas, revolveres e espingardas! Depois veio o coronel Marinho, gigantesco em sua soberba! Seu um metro e setenta de estatura haviam se transformado em três metros de altura. Montado em seu cavalo negro, parecia capaz de desafiar o próprio Cão no Inferno! A fumaça que saia de seu revolver desenhando figuras sombrias no ar lembrava uma cobra sinistra a subir para o céu! Seu chapéu de palha lhe dava um ar tenebroso. Seus olhos azuis possuíam um brilho maligno, que lembravam os olhos flamejantes e amedrontadores de um gavião. Ele sorria com o canto da boca. Sua desbotada camisa de brim azul lhe parecia uma farda surrada e honrosa da velha e extinta Guarda Nacional! A praça em frente à cadeia estava tão admirada pela imponência do velho proprietário e seus homens, que permanecia muda até então. A multidão prendia o fôlego, esperando o tritão falar. Foi quando o coronel ergueu o gládio e, num gesto de general em batalha, deu seu brado de guerra: “- Fela-da-puta!! Tu nunca mais vai comer mulher nenhuma!!”
Numa das mãos trazia a velha espada enferrujada da Guarda Nacional, espada que fora de seu avô, e na outra um estranho e sinistro troféu. Fitou a multidão emudecida. Um rasgo de fúria e de vaidade lhe percorreu a espinha. Lembrou-se da figura hercúlea de Dom Pedro I (ou será Dom Pedro II?) no dia da Independência do Brasil, que ele vira nos livros de história e, num gesto enérgico, louco, e vingador erguendo o gládio e gritando em plenos pulmões no ar da manhã, deu vivas aos Martins, aos Marinhos e ao Partido Republicano Cearense, e atirou no chão empoeirado, aos pés da multidão espavorida, os ovos de Joaquim Catunda.

Continua...


OBS: O autor adverte que os fatos e nomes aqui citados são ficção, e que qualquer semelhança com fatos e nomes reais são mera coincidência.

Pergunto: Mas a ficção não se alimenta da "realidade"? Ficção é mentira ou uma estratégia narrativa para falar da "realidade"? A história não é uma forma de ficção ou a ficção não é uma forma de contar uma história?
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Um comentário:

  1. Fiquei extremamente surpresa com seu blog. Vi um conto como chamavam naquela época, sobre meu bisavô Coronel Marinho. Tenho sede pela história dele, mas infelizmente não sei por onde começar.
    Parabéns meu amigo.

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