sábado, 26 de julho de 2014

Letrado 3: análise do livro "Nas trilhas do sertão"




Na quinta feira, 24 de julho, foi lançado, no auditório da escola Profissional de Ipu, o livro “Nas trilhas do sertão: escritos de cultura e política nos interiores do Ceará (1850-1930)”.  Abaixo trazemos uma análise da obra que é, na verdade, a sua apresentação, escrita por mim. Os interessados em adquiri-lo basta entrar em contato com um dos autores.


APRESENTAÇÃO

            Este livro é composto por uma coletânea que reúne seis textos historiográficos e que são resultados de recentes pesquisas levadas a cabo no âmbito da academia. Há, no entanto, um fio condutor que permite reuni-los numa mesma obra.
            Em primeiro lugar, todos falam de um lugar que no passado recente era conhecido como “zona norte” e que tinha nos trilhos da ferrovia os fios que teciam e fortaleciam os deslocamentos, a circulação de mercadorias, livros e ideias. Do porto de Camocim, no litoral norte, à cidade de Ipu, ao pé da fértil Serra da Ibiapaba, o trem formava um caminho de muitas idas e vindas e contribuía enormemente para imprimir transformações sentidas por seus habitantes de modo bastante semelhante e ao mesmo tempo singular.
Em segundo lugar, os autores desta obra parecem partilhar de um mesmo universo teórico-metodológico. De um lado, não consideram a história como uma ciência objetiva, capaz de trazer a verdade do passado. De outro lado, também não aceitam a ideia de ela não passar de uma construção linguística, destituída de qualquer referencial. Considera-se, em última instância, que a história é, também, em parte, uma construção do historiador, mas que se faz com base em uma operação bastante complexa, própria do campo historiográfico e, não podendo ser resumida, primeiro, a mera ficção, quer dizer, a uma narrativa construída unicamente pela imaginação do pesquisador, embora se pareça com a realidade e se alimente dela, ou, segundo, a apenas e unicamente uma estratégia narrativa, um jogo de prefiguração linguística, como defende Hayden White[1].
Portanto, o leitor encontrará aqui reflexões e interpretações sobre o passado que partem de um trabalho de garimpo, feitas por historiadores que reconhecem o valor da técnica, de uma operação complexa, própria de sua disciplina, mas que não se fecha no seu casulo, sobre si mesma, considerando a sua análise como a única possível sobre o passado.
As histórias contadas aqui são apenas versões possíveis de outrora. A história, é também, como defende Antonio Paulo Rezende, “reescrita na leitura de cada um” [2].

No primeiro capítulo, escrito em conjunto por Raimundo Alves de Araújo e Reginaldo Alves de Araújo, “Ceará do século XIX: uma ‘coucha de retralhos’ ainda a ser cosida”, os autores discutem sobre a formação da ideia de cidadania, nação, estado e identidade no interior do Ceará na primeira metade do século XIX e como o Estado brasileiro, para se fazer presente nos locais mais recônditos, buscou o apoio das famílias proprietárias de terras, que estabeleciam a lei, a ordem, a punição e o crime, sancionando governos locais autônomos, que impunham o poder com base na tradição de mando herdada dos privilégios oriundos das primeiras famílias ali instaladas. Desta forma, o controle do voto, das terras, bens, da justiça e dos espíritos estiveram nas mãos de famílias poderosas, particulares, se constituindo como um entrave aos valores liberais e dispositivos jurídicos do próprio estado, em transformação, e da cidadania, em meados do século XIX.
No segundo capítulo, Denis Melo, partindo da aproximação entre Literatura e História, analisa os sentidos conferidos pelas profecias de Frei Vidal da Penha, um capuchinho italiano que passou por Sobral em fins do século XVIII, com base em sua obra literária, O Dragão, onde defendeu o fim dos tempos e a noção de que a Catedral da Sé era uma Cama de Baleia.
No terceiro capítulo, Francisco Petrônio Peres Lima e Carlos Augusto Pereira dos Santos analisam as práticas e representações levadas a cabo pela experiência do Círculo Operário de Ipu, fundado em 1932, sob o apoio da Igreja Católica local e que buscou orientar suas ações com base em um projeto de sociedade voltado para os valores da religiosidade e para moldar a cultura operária entre os anos de 1932 e 1946, com a preocupação, ainda, de barrar a influência comunista, forte em todo o país naquele momento.
Os autores propõem analisar e discutir a sociedade Ipuense daquele período, levando em consideração os espaços e conflitos na construção do modelo católico circulista dos trabalhadores, momento em que a Igreja se utiliza de estratégias morais e espirituais para combater a “ociosidade”, capaz de desvirtuar os trabalhadores de seus verdadeiros papéis, e defender os valores do trabalho, contra a influência de ideologias como o comunismo.
No quarto capítulo, intitulado “Eusébio de Sousa e a construção da narrativa histórica: o caso de Ipu-Ce”, proponho discutir como Eusébio Neri de Sousa, pernambucano, bacharel em direito, historiador e juiz da Comarca de Ipu entre os anos 1913 e 1918, construiu uma narrativa história que falava da “evolução da civilização” local rumo ao progresso e como e por que a sua narrativa histórica foi eleita como a “história oficial” do município de Ipu e a mais digna de ser ensinada à população.
No capítulo seguinte, Antonio Iramar Miranda Barros analisa como a sociedade Ipuense dos anos iniciais do século XX, momento de transformações diversas, se comportava frente às práticas sexuais desenvolvidas com a fundação do famoso cabaré da rua da Mangueira, local de confinamento das meretrizes após sua expulsão do centro da cidade, pelas autoridades locais, e onde exerciam o seu ofício, seduzindo seus futuros clientes, e consumando o ato nas casinhas da Rua do Progresso, bem próximas ao templo sagrado do Quadro da Igrejinha (área “nobre”). O autor demonstra como a prostituição e o cabaré eram, a um só tempo, condenados pela moral da assim chamada “melhor sociedade” e necessários para aplacar, de um lado, o desejo sexual dos jovens e manter, de outro lado, a honra, a virgindade da mulher feita para o casamento. Neste jogo contraditório e de papeis bem definidos a meretriz e o meretrício eram condenados e aceitos ao mesmo tempo.
Finalmente, fechando a obra, Reginaldo Alves de Araújo analisa as relações existentes entre as instituições do Estado brasileiro, em formação, e as elites que viviam na região do Acaraú, no Ceará, em meados do Século XIX. O seu objetivo é entender as formas de atuação dos dispositivos estatais nos “sertões”, com destaque para as contradições entre os novos valores defendidos pela ordem (a civilização, o disciplinamento, o respeito aos dispositivos jurídicos), a cultura das elites locais e de seus habitantes, ligada à tradição, ao compadrio, à troca de favores e ao clientelismo. Embate que parece estar na raiz de nossa formação.

Antonio Vitorino Farias Filho. 17/07/2013





[1] WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Neste livro instigante, Hayden White propõe uma análise da, assim chamada por ele, “consciência histórica do século XIX”. Aqui, o autor discute as principais obras dos historiadores do século XIX, Tocqueville, Michelet, Ranke e Burckhardt, e dos filósofos da história do mesmo período, Hegel, Michelet, Marx e Croce. Inova ao propor uma interpretação sobre a metodologia do trabalho histórico, que não consiste em discutir as escolas históricas, como os estudiosos estavam acostumados a fazer, mas com base nas estratégias narrativas que cada autor leva a cabo, em sua produção e discussão do campo. Para tanto, se vale do auxílio de instrumentos conceituais da linguística e da crítica literária, isso porque o autor define o trabalho histórico como “uma estrutura verbal, na forma de discurso narrativo em prosa, que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-o”. (p. 18). Portanto, busca identificar e analisar nas obras dos historiadores do século XIX, os componentes estruturais das narrativas e suas estratégias narrativas levadas a cabo.


[2] REZENDE, Antonio Paulo. Apresentação. In: BARROS, Natália; REZENDE, Antonio Paulo; SILVA, Jaílson Pereira (Org.). Os anos 1920: Histórias de um tempo. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 12.
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