quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A Idade Média nunca existiu: é um mito! Parte I



A rigor, seguindo a reflexão do historiador e medievalista, Jacques Le Goff[1], a Idade Média não existe. Esse período que é tradicionalmente compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e a Queda ou Tomada de Constantinopla (1453) não passa de uma construção, um mito, um conjunto de representações, de imagens em perpétuo movimento. O período medieval tem sido construído e reconstruído com diferentes objetos e por diferentes grupos.
            A segunda questão a ser levantada diz respeito ao fato de que o termo Idade Média tem uma história que precisa ser levada em consideração, sob pena de considerar as imagens construídas sobre ele como verdades atemporais. Nesse sentido, há inicialmente a imagem ou construção de duas Idades Médias. A primeira é aquela produzida pelos humanistas do chamado período moderno e carregada de estereótipos e preconceitos. É aí que nasce a noção de Idade Média como um período intermediário entre a Antiguidade clássica e a modernidade ou entre dois movimentos onde a cultura teria se desenvolvido. O período é caracterizado como aquele marcado por hábitos violentos e pela inexistência de uma produção cultural, presente ainda no imaginário de nossos alunos.
Buscando inspiração nos valores humanísticos da cultura greco-romana, os modernos produziram uma visão negativa da chamada, por eles, Idade Média, como um período de decadência e de atraso na história da humanidade, como a “idade das trevas” ou como “uma noite de mil anos”. Segundo o já citado Jacques Le Goff, quando os humanistas definiram como tempo intermediário o período compreendido entre eles próprios e a Antiguidade o fizeram tomando como parâmetro ideias como flagelo e ruína. Desta forma, para eles, o tempo compreendido entre a antiguidade e a modernidade, ou seja, a Idade Média, seria de atraso e vazio cultural. A Idade Média teria sido uma interrupção do progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomados pelos homens do século XVI. Também para o século XVI os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição. Visão reforçada e levada ao extremo pela filosofia iluminista do século XVIII na França ao estabelecer a razão humana como único guia infalível para a humanidade em detrimento do caráter religioso presente na Idade Média.
A segunda noção de Idade Média é construída no XIX com base numa visão romântica do medievo, cuja versão a transforma numa “idade da luz”. Essa construção ocorreu frente ao movimento nacionalista, sobretudo francês, que passou a buscar fatos e personagens medievais cujos valores fossem relevantes para a identidade nacional, como é o caso de Joana Darc, transformada em heroína. A Idade Média transforma-se assim numa espécie de infância dos primórdios da nacionalidade e que atinge sua idade adulta com o Renascimento.
Desta forma, cada presente construiu a noção de Idade Média segundo os interesses dos grupos envolvidos nessa produção. Nós historiadores estamos hoje conscientes do fato de que os homens visitam o passado com as questões do presente e que cada presente produz uma revisão do passado. O mesmo ocorre com os historiadores.
Seja entendida do ponto de vista negativo, como “Idade das Trevas”, seja do ponto de vista positivo, como “Idade da Luz”, ambas as noções têm sido negadas no sentido de uma apreensão mais abrangente do período medieval. Ao historiador, por exemplo, é preciso se despir dessas noções cristalizadas e na pesquisa entender o período com base em sua própria historicidade, o que não se trata de tentar buscar uma verdade melhor, como se ela existisse, mesmo porque nós historiadores estamos hoje conscientes de que o nosso discurso, embora partindo de uma operação metodológica extremamente complexa e apenas apreendida pelo iniciado, é, em parte, também, uma construção nossa. A noção de ciência objetiva, cujo modelo era o das ciências naturais, como queria o positivismo ou a Escola Metódica, já não tem mais espaço. O conceito de cientificidade adotado hoje pelos historiadores é outro e não descarta que a subjetividade é um componente da qual não podemos fugir embora façamos esforço para isso.

Continua...




[1] Ver LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, e, LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014
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