sexta-feira, 13 de julho de 2018

As cidades invisíveis (Ítalo Calvino)





As cidades invisíveis[1] é um desses livros fenomenais que não se pode morrer antes ler sob pena de não ter vivido um saboroso prazer indescritível. A maneira como o autor entende as cidades muito me ajudou na escrita da minha tese - já que nela eu discutia o espaço urbano - precisamente porque Ítalo Calvino colocou em xeque a ideia de que houvesse uma homogeneidade na cultura urbana, enfatizando a complexidade das muitas cidades, como representada por seus diversos habitantes ou pelos viajantes e estrangeiros que por elas passam.
Além disso, o texto é uma delícia, podendo ser comparado, com exagero, é claro, às narrativas de Scherazade que conta, noite após noite, mil e uma histórias saborosas ao sultão, para fugir da morte. Tal como o sultão se apaixonou por Scherazade, podemos nos apaixonar, também, não pelo autor de As cidades invisíveis, péra lá!, mas por suas belas narrativas.
Nesse instigante livro, Marco Polo descreve para Kublai Khan, a quem serviu durante muitos anos, as incontáveis cidades do imenso império mongol.
Para além das histórias, o que mais me ajudou foi perceber e chegar à noção de que as cidades, como a própria realidade, não são concretas, como uma pedra ou um objeto material. Elas são “experiençadas”, vividas, sentidas. Desta forma, não existem como algo único, total, mas em suas multiplicidades.
A cidade, que não pode se resumir a algo concreto como uma rocha, portanto, tem a sua existência na percepção e nas imagens que seus habitantes criam dela. Ela só tem existência neste patamar. Portanto, é uma experiência plural.
As experiências múltiplas se configuram como a própria realidade, toma o seu lugar. Cada um, cada grupo de pessoas a representa ou a constrói. A cidade, como a realidade, não supõe nenhuma unidade ou totalidade e não remete a um único sujeito. Parece ser, para Calvino, uma construção. Pode-se descrever uma mesma cidade como se fossem muitas outras cidades. E isso ocorre por pelo menos dois artifícios: o primeiro diz respeito aos aspectos que o narrador privilegia: sua forma, ruas, povo, esquina, edificações etc. O segundo, e mais importante, refere-se ao fato de que uma cidade é vivida, “experiençada”, sentida de formas diferentes por seus diversos habitantes, viajantes, estrangeiros. Cada um a representa de uma forma singular. Assim, pode-se falar de uma mesma cidade como se fosse outra, dependendo de quem narra ou a representa. Creio, esse é um procedimento usado por Ítalo Calvino, por meio da narrativa de Marco Polo.
A cidade, portanto, só tem existência em sua relação com os seus habitantes e grupos que a compõe. Cada um deles vê o mundo e o espaço onde vive de uma determinada forma, cuja ligação é dada por sua vivência, seus interesses. Cada indivíduo ou grupo representa a cidade segundo sua visão de mundo e seus interesses ligados à sua vivência.  Volta-se para aspectos específicos da realidade e constrói, ou reconstrói, a cidade e seu mundo incessantemente e de forma criativa. As pessoas selecionam aspectos singulares num leque de opções disponíveis em sua cultura e relação com o seu mundo para representar o local onde vive ou por onde passa.
As cidades são invisíveis porque não existem materialmente, como unidade ou totalidade que podem ser ditas de uma vez por todas. Essa metáfora permite pensá-la como construção feita com base nos significados que representa para cada habitante ou grupo de pessoas. As ruas, edificações, traçados, esquinas, casas, só adquirem sentido quando “experiençadas”, vividas e, portanto, estão carregadas de simbolismos para aqueles que vivem e trafegam por seus espaços. Como pode uma cidade ser descrita por alguém e essa descrição se colocar no lugar da cidade? A cidade é apenas uma representação entre as tantas possíveis. E mesmo para quem escuta uma tal descrição, como faz Khan,  a cidade é visualizada e significada de forma diferente porque entra em contato com outra experiência de vida e interesses.
As cidades nunca se resumem ao seu espaço físico, geográfico ou a uma única representação. São invisíveis. É isso que Calvino quer dizer?
Cada cidade, para Calvino é única, sem ser total, e contém um pouco de cada uma, porque vividas, e o seu número é infinito, porque as experiências são igualmente infinitas.





[1] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


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