domingo, 29 de julho de 2018

Genealogia da moral - Nietzsche




Nietzsche é um desses autores que desconserta qualquer leitor, mesmo os mais avisados, quer dizer, mais preparados. É preciso dizer que não é uma leitura fácil e que nem o que escreveu está isento de contradições.  Sua obra é das mais polêmicas e controvertidas. Põe em questão nossa maneira de pensar, agir e enxergar o mundo e, com um martelo na mão, mira em todos os ídolos construídos pela moral, pela filosofia que chama de socrático-platônica e pela ciência.
Na minha concepção não se pode morrer sem lê-lo ainda que seja para discordar dele. O perigo de tal leitura é nos deixar perturbados, nos tirar da inercia, nos colocar sobre areia movediça. Há algo melhor do que isso?
A interpretação abaixo é um resumo, simplificado, com linguagem mais acessível, voltada para o leitor não especializado, de uma resenha que escrevi quando li Genealogia da moral[1], considerada por muitos especialistas, um dos principais livros de Nietzsche.  

Nietzsche e a Genealogia da Moral

            Neste livro o filósofo alemão empreende uma severa crítica à ciência e à filosofia. Em primeiro lugar, para ele, elas não estão isentas da moral, pelo contrário, sempre partem de um ponto de vista particular. A questão da verdade na moral e na ciência são secundários no pensamento de Nietzsche. O mais fundamental é a questão dos valores e, no seu âmago, os valores morais. Qual o valor dos valores morais? Essa é a pergunta fundamental da filosofia de Nietzsche.
            Para ele, a crítica dos valores só pode ser feita com base numa perspectiva extramoral, amoral, imoral ou se situar além do bem e do mal, quer dizer, para além da moral. Desta forma, a vida é considerada como instinto, como força, como vontade, como potência, isto é, como vontade de potência. O que torna possível a genealogia da moral como genealogia da vontade de potência, que tem como principal objetivo avaliar os valores morais com base na vida, é a relação intrínseca estabelecida por ele entre moral e vida. O critério último de julgamento da vida deve partir da própria força que a institui.
Não lhe interessa saber se os juízos de valor sobre a vida são verdadeiros ou falsos, mas avaliar a sua força que institui um tipo de vida. Que tipo de vida instituiu a moral judaico-cristã? Qual o seu valor?

Genealogia da Moral e Vontade de Potência

Fazer uma crítica radical da moral é uma das tarefas essenciais de Nietzsche. Colocando a questão do valor, Genealogia da moral está avaliando a sua força. Ao suspeitar do valor da moral, a genealogia pretende desvalorizar os valores prevalecentes até então. O objetivo central dessa filosofia é colocar em questão o próprio valor dos valores pelo conhecimento das condições de seu nascimento, desenvolvimento e modificação. Desta forma, considera que os valores não são algo em si, não são dados, não têm existência exterior ao homem, não são um fato, uma realidade e, portanto, como além de todo questionamento.
A tese central do livro é a existência de uma dupla origem dos valores morais e de sua oposição histórica entre dois tipos fundamentais de moral: uma “moral dos mestres”, dos senhores, e uma “moral dos escravos”, ou uma “moral sadia”, “natural”, como fala em O Crepúsculo dos ídolos[2], regida pelos instintos da vida, e uma “moral contranatural” voltada contra os instintos da vida.
A moral dos mestres, aristocrática, é uma ética do bom e do mau, entendida como uma força vital, que define o homem por sua potência, pelo que ele pode e é capaz de fazer. Ao contrário, a moral plebeia ou dos escravos é um sistema de juízos que institui o bem e o mal considerados como valores metafísicos, transcendentes ou transcendentais. No primeiro caso, a vida é definida como positividade. No segundo caso, é definida como negatividade, mas não porque uma seja verdadeira e outra falsa, mas porque uma é símbolo de vitalidade, potência, força, plenitude e a outro símbolo de decadência, diminuição dos valores vitais, da potência, do vigor.  
Colocando a questão dessa forma, o objetivo central do filósofo da suspeita é realizar uma crítica radical dos valores morais dominantes na sociedade moderna. É ela feita com base nos valores da vida, tomando a vida como único critério de avaliação. Nesse sentido, a ética do bom e do mal, aristocrática, desempenha o papel de um princípio de avaliação e de modelo de alternativa crítica aos valores dominantes. O modelo de Nietzsche é a Grécia arcaica, momento em que, segundo ele, operou os valores aristocráticos e que sempre significou o apogeu da civilização, onde encontra na arte (na epopeia, na poesia lírica, na tragédia) os valores que opõe à moralidade. Da mesma forma que a filosofia socrático-platônica estabeleceu uma ruptura entre o trágico (instinto) e o racional (lógica), a religião judaico-cristã instituiu uma ruptura entre ética e moral. Momentos distintos, têm em comum assinalar o nascimento de um período de decadência.
Desta forma, a filosofia socrático-platônica e a moral judaico-cristã teriam transformado o homem vital em animal doméstico, uma ave de rapina em cordeiro. Teriam transformado o tipo forte de homem num homem fraco, superação das forças ativas pelas forças reativas, fazendo os próprios fortes assumirem os valores dos fracos e produzindo um animal doente, decadente.
A moral judaico-cristã, como moral do fraco, dos valores reativos, dos valores vitais, teria realizado uma total inversão de valores ao afirmar que os bons são apenas os miseráveis, pobres, necessitados, impotentes, baixos, sofredores, doentes, disformes e que os nobres e poderosos são malvados, cruéis, lúbricos, insaciáveis, ímpios. Desta forma, a moral judaico-cristã ao inverter os valores positivos da ética aristocrática, expressou o ódio contra a vida, contra o que é positivo, afirmativo, ativo, na vida. Essa moral, na medida em que nega os valores da vida, é, para Nietzsche, niilista.
Como demostra Roberto Machado[3], leitura que nos serve de baliza aqui, Nietzsche define, em Genealogia da moral, esse tipo de niilismo com base em três figuras: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético.
O ressentimento é o predomínio das forças reativas sobre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age, nem reage, produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável. Criando um inimigo que considera malvado e imaginando uma vingança contra seus valores, o ressentido dá sentido à sua falta de força. Coloca sempre a culpa de sua inércia no outro, é sempre o culpado do que não pode, do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como malvado, o ressentido pode então se considerar melhor ou se imaginar bom.
A má consciência ou o sentimento de culpa tem, para Nietzsche, uma dupla origem. A primeira é a transformação do tipo altivo em culpado que se deu com o nascimento do Estado. O Estado, como força repressora, coercitiva, abateu-se sobre uma população de nômade, selvagem e livre, desvalorizou abruptamente os instintos, reduzindo esses “semianimais” ao pensamento, à consciência. Esses instintos vitais, força, potência, voltaram-se para dentro, para o interior, criaram a interioridade. Essa força voltou-se contra o próprio indivíduo. É, pois, a interiorização das forças ativas, da vontade de potência, que cria a má consciência.
A segunda forma de má consciência é a transformação do ressentido em culpado realizado pelo padre ascético. O ressentido que é ao mesmo tempo o sofredor busca um culpado para o seu sofrimento, para sobre ele descarregar todo o seu ódio. É o padre que ensina que o único culpado desse sofrimento é ele mesmo. A má consciência é o ressentido voltado contra ele mesmo. É assim que nasce o pecado.
A terceira forma de niilismo é o ideal ascético, caracterizado pelo fato de considerar a vida um erro, negá-la e fazer dela uma ponte para outra vida, a vida verdadeira. É o ideal ascético que inventa um além para caluniar um aquém, que inventa um outro mundo para condenar a vida. É a vingança da vida com a ideia da existência de uma outra vida, melhor que esta.
Assim, o que caracteriza a moral cristã, ao interligar a noção de ressentido, má consciência e ideal ascético, é caluniar e envenenar a vida. Desta forma, essa moral é niilista. Com ela os instintos de decadência dominam os instintos de expansão da vida, a vontade de nada vence a vontade de viver. Para ela não-ser é melhor do que ser. Se a essência é ser nada, é não ser, então essa vida não vale nada, por isso é condenável. Niilista, a moral exprime uma vontade de nada, de depreciar a vida. É o próprio triunfo das forças reativas.
Nietzsche, como dissemos, empreende uma crítica aos valores modernos, porque os considera niilistas, isto é, dominados por valores morais, pelos valores superiores, da decadência, pois a moral dos escravos foi vencedora e impera na Europa.
Contra o enfraquecimento do homem, a transformação dos fortes em fracos é necessário assumir uma perspectiva além do bem e do mal, ou seja, além da moral. Para além do bem e do mal não significa para além do bom e mau. É bom tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência. Mau é tudo que provém da fraqueza.



[1] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[2] ______. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar  com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[3] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.


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