quarta-feira, 20 de março de 2013

O Campo de Concentração do Ipu - Parte II





O Campo de Concentração do Espraiado

O Campo de Concentração do Ipu foi o único erguido à beira da Estrada de Ferro de Sobral. O objetivo de sua criação naquela localidade foi justamente assistir a população da zona norte e noroeste do Estado do Ceará, impedindo o seu deslocamento, pela via férrea, para algumas cidades da região, como Sobral e Camocim e, principalmente, à capital.
Os Campos de Concentração, no interior, foram erguidos em locais ligados às grandes rotas de expulsão de flagelados em momentos de seca. A maioria no sertão central, a área interiorana mais assolada pela estiagem. Sempre próximos a uma estação ferroviária, não só barrava a emigração, mas, da mesma forma, possibilitava um maior controle sobre as “vítimas” da seca. 
Não fugindo a regra, o Campo de Concentração do Ipu foi erguido próximo à ferrovia, porém, distante 3Km do centro urbano da cidade facilitando, desta forma, o controle sobre as vidas dos assistidos. Próximo e entre dois bairros periféricos atuais, Pedrinhas e Alto da Boa Vista, e também próximo ao cemitério, foi pensado visando conter as tensões sociais que uma aglomeração daquele porte suscitava.
O Campo era ao mesmo tempo desejado e indesejado pelas elites locais. Se, de um lado, representava o perigo de contágio de doenças e revoltas, por outro, gerava um montante de recursos financeiros impensáveis em condições normais. Em nome da assistência e do amparo “humanitário” toda uma gama de obras públicas, seja de melhoramentos urbanos, seja de infraestrutura – desejo da “classe dominante local” – foram possibilitados. Tais obras só foram possíveis também com a mão de obra quase gratuita dos flagelados.
A um só tempo, a seca gerava miséria e abundância, amor e ódio, disciplina e indisciplina. Pobreza e riqueza, nesse momento, são duas faces da mesma moeda. A primeira é indesejada. A segunda é ansiada.
Para minimizar sua face mais “perversa” é criada, na esteira do que ocorria na capital, pelas autoridades, uma estratégia de controle social e disciplinamento dos famintos. Era preciso mantê-los afastados do convívio social urbano e da “mendicância”. A seca foi amplamente utilizada pelas autoridades para angariar recursos necessários às obras de infraestrutura e de melhoramentos urbanos. Foi assim na capital e no interior do Estado. Os retirantes, ao mesmo tempo em que suscitavam problemas de toda ordem, representavam também a esperança na obtenção de recursos e uma mão de obra quase gratuita, amplamente usada nas obras públicas.
Em Ipu a administração lançou mão amplamente da força de trabalho dos flageladas. A cadeia pública, a pavimentação das ruas, reformas de praças, abertura de novas estradas, enfim, um grande número de obras foram empreendidas com o braço dos flagelados.
A imposição do trabalho aos assistidos visava combater o ócio, o grande inimigo da “ordem” e da “disciplina”. A contrapartida da assistência era o trabalho disciplinador. Um dos princípios fundamentais de concentrar em um mesmo lugar a assistência aos flagelados era sua relação com o recrutamento do trabalho para as obras públicas. Ao mesmo tempo em que facilitada à organização de frentes de trabalho, permitia o seu disciplinamento e controle. O ócio dos flagelados era combatido frequentemente pelo poder público, pois causava “desvios morais”, “mendicância” e “vadiagem”. Desta forma, só o trabalho poderia corrigir aqueles vícios. Portanto, a assistência deveria estar atrelada à obrigação ao trabalho dos flagelados válidos. A estes, dificilmente restava outra alternativa a não ser submeter-se a um regime de trabalho pesado e disciplinador.

A organização do Campo do Espraiado

A criação dos Campos de Concentração, desde o início, foi pensada não simplesmente para facilitar a assistência, mas para, através dessa assistência, controlar os flagelados. O disciplinamento e a organização do trabalho deveriam ser os principais objetivos. Para manter o controle e a ordem havia, de acordo com o Jornal O Povo, que esteve no Campo de Concentração do Ipu em julho de 1932, “20 homens com relativa instrução militar e que se encarregava do policiamento local”.
Havia ainda uma grande preocupação com a higiene. Para isso existiam feitores e inspetores sanitários, duas assistentes e enfermeiros, cadastradores e varredores. Ainda de acordo com a matéria do Jornal O Povo, ao entrar no Campo, cada “flagelado” era cadastrado e logo enviado à seção de vacinação, sendo esta obrigatória, “sem qualquer exceção”.
Para o poder público e os grupos de pessoas abastadas a principal preocupação era com a chamada “desordem social”. Logo que o Campo de Concentração do Ipu foi erigido e a notícia de que o governo estava assistindo os flagelados naquela localidade, um número muito grande de famintos das regiões circunvizinhas acorreu para a cidade de Ipu em busca de amparo. A área urbana do município que contava com não mais de 6.000 habitantes, em pouco tempo recebeu mais de 7.000 flagelados, de acordo com os números oficiais. A maioria dos retirantes vinha das regiões adjacentes ao município, mas também chegavam retirantes das regiões mais distantes.
Não se sabe ao certo o número exato de flagelados assistidos no Campo de Concentração da Terra de Iracema, uma vez que houve indícios de fraude na sua administração, a cargo de Joaquim Lima, interventor municipal (1930-1935). Embora os números do governo apontem para uma população de 9.000 assistidos, para o médico que trabalhou no Campo, Francisco Araújo, o “curral” chegou a confinar 20.000 flagelados.
A maioria dos retirantes vinha das regiões adjacentes ao município, mas também chegavam retirantes das regiões mais distantes. Francisco Magalhães Martins que vivenciou aquele momento escreveu em seu livro de contos, Mundo Agreste, aquele episódio: “O comboio apanhava mais flagelados em cada estação – Pinheiro, Novas Russas, Ipueiras. Nos vagões se confundiam homens, mulheres, meninos e velhos, com os bichos brutos (...). Também, em promiscuidade, os sadios e os doentes – tuberculosos, epiléticos, assezoados, até loucos (...). Vinha gente de diferentes regiões – do centro e dos confins do Estado, do Alto Jaguaribe. Todos demandavam Ipu como a Terra da Promissão. Correra a notícia exagerada de que não faltava inverno na Serra Grande, feito um celeiro, sendo o Ipu, ao sopé da cordilheira, o escoadouro dos produtos. Os que conheciam a cidade falavam da bica do Ipuçaba, caindo da serra, perenemente, sem nunca ter secado. Não faltava água. Ademais o Campo-de-Concentração era a garantia de que ninguém morreria de fome. Falavam em legumes, em frutas, em farinha e rapadura. Ah! Haveria fartura em Ipu – a Canaã tão desejada!...”

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