terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

NUNCA É TARDE PARA CHORAR I de parte III



A Fraqueza da Carne

Do final dos anos quarenta para o início dos anos cinquenta chegou ao Ipu, logo após a morte do velho Monsenhor Gonçalo Lima, um jovem padre que era a “sensação” da cidade: seu nome era Francisco Pereira de Meireles. Por seu refinamento cultural e por sua ligação com o Bispo Dom José de Sobral, gozava ele de invulgar prestígio na cidade. Alto, esbelto e elegante, o jovem pároco era o preferido das damas da sociedade para fazer a confissão nos domingos. Ele, em si, despertava paixões e induzia muitas mulheres ao pecado, ainda que em pensamento. E naquela manhã de janeiro, logo após a comunhão, entrou na fila do confessionário uma respeitável e elegante dama da sociedade: Dona Julia, esposa legítima do coronel José Alves de Araújo, e mãe exemplar de uma criança de colo.
Acostumados, desde seus tempos de noviço, em que fora pupilo de Dom José, a ouvir de todo tipo de pecado, o jovem pároco não estava preparado para escutar a confissão de Julia: “- Seu padre eu pequei! Tenho o coração tomado de remorso pelo crime que pratiquei contra Nosso Senhor Jesus Cristo! E queria que o senhor me absolvesse de tamanho fardo!”. “-Diga que pecado foi esse, minha filha”. “-Seu padre, eu, pra me vingar das traições de meu marido, peguei nossa filhinha recém nascida e dei pros outros criarem, e hoje ela se perdeu e eu me sinto a responsável por isso. Ela foi tomada a força pelo cabra safado do Joaquim Catunda, que o coronel Marinho capou”. “-Ô minha filha, isso é um pecado mortal! Sua filha era uma inocente! Deus Nosso Senhor ama as criancinhas! Crianças são a encarnação de Deus! Eu vou lhe dar uma penitência bem forte, para que possa lavar sua alma de seus pecados: você tem que se vestir com uma mortalha negra, com uma cruz branca no peito, e ir no cemitério da cidade à meia-noite, acender uma dúzia de velas pras'almas do purgatório! Faça isso nove sextas-feiras seguidas, nove anos seguidos, a começar na sexta-feira da paixão, e peça perdão a Deus, reze pra São Francisco, São Lázaro e Santo Expedido! Quem sabe assim eles possam interferir junto à Deus, para salvar sua alma!”
        Desde aquela data as encruzilhadas e as ladeiras do Alto dos Quatorze passaram a ser assombradas por uma aparição fantástica.       Indiferente a real identidade desta assombração, a cidade dormia amedrontada por superstições ancestrais: “-É um vulto negro, alto e difuso que sempre aparece com a lua-cheia, usa uma mortalha escura e é visto pelos caminhos ao lado das sepulturas desertas e das encruzilhadas malditas. Dizem que é alguém que virou lobisomem, que amaldiçoou o pai e a mãe, o padrinho e a madrinha, e que fora excomungado pelo Papa, que carrega um pecado mortal e a marca de Caim no peito, que tem que peregrinar nove sextas-feiras em sete cemitérios pelas quatro províncias do mundo, nove anos seguidos, vestindo uma mortalha encantada e pedindo perdão a Deus por um pecado mortal! Se o amortalhado encontrar com você, meu filho, ele joga a sua mortalha maldita em cima de você, e assim lhe transfere todos os seus pecados! E será você a andar amortalhado! Corra, meu filho, corra do Amortalhado do Alto do Cemitério, se o vir pelos caminhos e pelas encruzilhadas do Ipu! Ele é cria do Demônio! É coisa do outro mundo! É um amancebado, homem que virou lobisomem!! Ou é um assassino do próprio pai e da própria mãe, um excomungado condenado pelos santos da igreja a peregrinar até o dia do Juízo! Assim, sem o querer, Julia Alves fez nascer a lenda do Amortalhado que povoaria o imaginário social da população do Ipu por quase toda a segunda metade do século XX!
Anos depois, José, o marido, amargurado pela infelicidade da filha, sentindo-se punido por Deus e pela esposa, passou a frequentar a igreja, para se confessar ao padre Meireles e a beber cachaça como nunca havia feito antes. E foi assim que o pároco se inteirou dos detalhes que rodeavam todo o ocorrido. Ninguém na cidade era mais informado do que ele. Graças às confissões dos fiéis, sabia o padre de primeira mão qual marido traia a esposa, qual esposa tinha sonhos pecaminosos com os homens alheios, quem era corno, que adolescente fornicava com cabritas ou jumentas na ausência dos pais, quem ia ao cabaré do Ipu pagar pelo sexo das mulheres da vida, quem sovinava esmola e comida aos pobres do sertão, e quem levantava falso testemunho!

E foi num domingo de confissão, por detrás das grades finas do confessionário, que o padre Meireles teve o prazer e a infelicidade de receber pela primeira vez a filha renegada dos Araújo, a jovem Maria Alves. Olhos azuis como o azul do céu (um azul safira, esmeralda), boca carnuda e sensual (como a manga jasmim), seios lindos e branquinhos (como um prato de coalhada), cintura fina e pernas - Meu Deus, as pernas! - eram uma obra de arte! Uma criação de Deus (ou será do Diabo?). Se é verdade que fora Deus que criou o homem a sua imagem, a mulher só pode é ser obra do Cão! Sim! A mulher é obra do Cão! pensou o padre, ao fitar, de súbito, por detrás das grades do confessionário, os olhos enigmáticos da bela jovem. Sentiu um calafrio na espinha, uma dor profunda em sua alma, e ele viu sua fé tremer diante daqueles olhos de oceano: “-Seu padre eu pequei!” E a frase lhe ardeu na alma: “Conte os seus pecados”. “-Depois que eu fui violada pelo Joaquim Catunda, eu vivo em pecado, amancebada com o Joaquim Martins, que é casado, e tem esposa e filhos pra criar!”. “-Você se arrepende, minha filha?” “-Sim seu padre, eu me arrependo, só não sei como viver, pois não tenho outro mei de vida, e minha mãe e meu pai, que são gente rica, me abandonaram!”. “-Reze 30 pai-nosso e 20 Ave-Maria, e peça perdão a Deus”, disse o padre à moça que estava ajoelhada em seus pés e que lhe perturbava o espírito. 

Continua...
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