Alarmada com a nova onda de manifestações populares,
parte dos intelectuais e da grande mídia faz uma análise assaz sombria do cenário
atual, identificando, pelo menos dois pontos negativos: em primeiro lugar, que
o país vive um momento de anarquia (caso não seja veemente combatidas, poderão
colocar em xeque a democracia) e, em segundo lugar, que o governo se mostra
incapaz de lidar com as manifestações, cujo resultado poderia ser a volta de um
Estado de exceção, uma nova ditadura, por exemplo. Encaro essa análise com desconfiança.
Ao
contrário, creio que vivemos um momento bastante singular na recente história
do Brasil. As manifestações populares são resultado, a meu ver, das
transformações pelas quais passou o país nestes últimos 25 anos, deste a
promulgação da constituição de 1988, a mais democrática de todas, por ser
inclusiva, garantir a participação de corporações e da sociedade civil no
processo político. Os últimos movimentos de rua expressam, de um lado, a
elevação dos padrões de justiça e dos direitos dos cidadãos, reconhecidos pela
Carta Magna, bem como um processo de igualdade jurídica, e, de outro lado, os
avanços no campo econômico e social, medidos por vários indicadores, que foram
capazes de diminuir a miséria, a pobreza e as desigualdades sociais, a despeito
das persistências.
Dito de
outra forma, a onda de protestos que assistimos ultimamente é resultado do
sucesso do processo democrático pós-ditadura militar e, consequentemente, da constituição
de 1988, que garantiu, no papel, a igualdade dos cidadãos e a defesa dos seus
direitos, quando violados, e de manifestação em defesa de seus interesses. O
que está em choque é, penso, uma sociedade que aprendeu a viver melhor e a
defender o que garantem as leis do país e a experiência de violação desses
mesmos direitos por aqueles que estão no poder.
Estamos
vivemos o que a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida chama de “revolução
tocqueviliana”, o que significa dizer, em resumo, que assistimos a ampliação de
uma cultura de igualdade e de direitos. No entanto, tais direitos são
sistematicamente negados pelas elites políticas em nosso processo histórico e
que, agora, diante da insatisfação popular, são obrigadas a abrir mão de seu passado
patrimonialista, cujos resquícios ainda são fortes.
Poderia
dizer ainda, de uma terceira forma, que as manifestações resultam de uma
insatisfação da juventude com a situação vivida pelo país que, não obstante os
avanços, apresenta uma ausência de possibilidade de um futuro melhor, com os
excessivos gastos com a Copa do Mundo, com a corrupção na política e uma
sensação de impotência ante a impunidade, com a falta de recursos para áreas essenciais,
como educação e saúde e, de quebra, com os transportes urbanos, que agonizam e,
finalmente, com a falta de canais de participação nas decisões, num cenário em que
os políticos e o Estado, com uma visão estreita da democracia, buscam decidir
em nome do povo, mas sem o povo, como se o fato de terem sido eleitos lhes garantissem qualquer decisão.
É
preciso que a postura do governo em relação aos manifestantes mude, não mais os
encarando de forma estereotipada, como se eles fossem vândalos, baderneiros ou
vagabundos, e lidar com as manifestações como algo legítimo, garantido pela
constituição. Por outro lado, não se pode admitir que grupos partidários e a
grande imprensa, igualmente partidária, por estar nas mãos de empresas e
políticos, usem-nas com o
objetivo de canalizar as insatisfações contra o governo federal, por supostamente
negligenciar seus interesses, e com a intenção de direcionar a opinião pública.
Creio,
finalmente, que está ficando para trás um processo político e cultural que
ensinava as pessoas a permanecer caladas, resignadas, a aceitar pacificamente a
sua condição, o seu destino, a sua miséria, a não se manifestar, a não
participar de movimentos em defesa de seus interesses, esperando um salvador da
pátria.
É
o legado, a meu ver, dos atuais movimentos populares.
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