Por Iramar Miranda
Pensando
a cidade como um aglomerado de diferentes “mundos”, temos a impressão de que os
conflitos de ideias, intenções e ideologias, se esbarram principalmente no
campo político, entretanto, a questão é bem mais complexa. Se assim
defendêssemos, estaríamos nos rendendo a um gesso historiográfico, que embora tenha
suas virtudes, limita a ação do pesquisador, não dando margem para abertura
interpretativa, nem tampouco, voz aos “esquecidos da História”.
Enquanto
ser profissional, nossas relações sociais tendem a ser direcionadas, na maioria
das vezes, aos nossos pares, com discursos e projetos de vida que se
entrelaçam, organizando assim, espaços de convívio que se tornam pertinentes a
determinados setores da sociedade, tendo como exemplo, os clubes recreativos,
os grêmios sociais, as associações ou mesmo, na informalidade, as reuniões de amigos
de trabalho aos fins de semana, em espaços não estabelecidos, mas comuns a
todos.
Assim,
o ser humano vai se fechando em suas relações, em seus “mundos”, onde as falas,
modos e projetos, são apresentados em defesas de classes, e não de sociedade.
Elias[1] muito bem analisa a
questão, quando nos apresenta “as sociedades fechadas”, a desconfiança com
aqueles que vêm de fora, ou mesmo, aqueles que não conseguiram ainda “se
estabelecer”.
Entre
tantos mundos difíceis de serem adentrados, a arte meretrícia se apresenta como
uma das mais complexas, talvez por conta de tantas incógnitas, superstições ou
mesmo exclusões à qual está submetida, se mostrando como um universo ainda a
ser explorado, principalmente quando se analisa o início do século XX e as
transformações sociais que o Ceará e o Brasil vivenciaram, transformações estas
que refletiram substancialmente nas pequenas cidades do interior do Ceará.
Fazendo
uma análise documental e bibliográfica do período compreendido principalmente
entre os anos de 1900 a 1930 na cidade de Ipu, interior do Ceará, discursos
sobre modernidade, controle social, melhoramento urbano e mudanças de
paradigmas[2], dominam as páginas dos
principais jornais e periódicos, bem como já foram bastante analisados na atualidade
em monografias, dissertações ou teses de conclusões de cursos, contudo, ainda
existindo várias possibilidades de visões acerca de como vivia esta sociedade,
utilizando para isto os resquícios deixados nestas fontes.
Exercitando
a compreensão dos registros, voltamos à questão dos “mundos” anteriormente
retratados. Àqueles que detinham o poder econômico e politico no início do
século XX, também se fizeram “Guardiões da História”, organizando-se em
associações e blocos, sendo o mais conhecido e elitizado no Ceará, o Instituto
Histórico e Geográfico Cearense[3], que reunira entre seus
associados, a “elite pensante cearense”, registrando à posteridade, tudo o que
achavam ser importante a ser lembrado.
E
como o pesquisador também pode ser confundido como garimpeiro, tentamos tirar
destes registros, o não dito, ou seja, aquelas informações que ficam nas
entrelinhas dos registros, para montarmos nossas teses e análises. Por vezes,
percebemos a importância das informações mais naquilo que fora negligenciado,
do que mesmo no que fora exposto e aqui voltamos à questão meretrícia.
Qual
era efetivamente o papel da meretriz? A sua função social? Ora, se existiam os
meretrícios dentro de uma sociedade vigiada, era por consentimento
principalmente das elites, que de uma forma ou de outra, tiravam algum proveito
da questão.
Sabemos
que em Ipu as meretrizes foram excluídas do centro da cidade, formando um novo
bairro próximo ao açude Bergdoff, margeando a zona rural da cidade de pouco
mais de 4 mil habitantes na zona urbana em 1920, longe dos olhares da “melhor
sociedade”. Mas sabemos também que esta mesma sociedade era assídua frequentadora
deste espaço, mantendo relações tanto sexual como sociais com as meretrizes.
Portanto, neste contexto, a cidade se confundia em determinado momento, ou os
“mundos” se confundiam, ou seja, o mundo das meretrizes e o mundo da “melhor
sociedade”.
É
conhecido o rito de passagem sexual dos homens no Brasil Colônia e Império, e
que reinou por grande parte no período republicano, no que concerne à prova da
masculinidade por parte dos varões. Sabemos também que as moças tinham como
premissa para o casamento, a prova e certeza da pureza, representada pela
virgindade. Ora, o dilema estava criado.
Como
manter as moças de família virgens, ao mesmo tempo em que pudessem comprovar a
masculinidade dos homens, iniciando-os na vida sexual? Aí surge o papel social
da meretriz. Como válvula de escape, ela tinha todo o traquejo e oficio da arte
do sexo, sem a necessidade de satisfação social, muito menos a preocupação com
a manutenção de uma relação conjugal.
Os
encontros eram sazonais e a rotatividade de clientes em grande escala. Sem
escolha, sem cobranças e muito menos sem a necessidade de conhecimento. A
variação e rotatividade das cidades visitadas, era norteada pelo fluxo de
clientes em que nelas aparecessem e assim, pouco se sabia da vida particular
das moças do baixo meretrício, pois delas se desejavam apenas os momentos de
prazer, o uso sem responsabilidades e acima de tudo, a satisfação à sociedade
sobre a masculinidade dos moços, que “agora”, pós-iniciação sexual, estavam
prontos para o casamento.
As
moças, se resguardando em seus mundos, sonhando com seus “príncipes encantados”
a seres escolhidos por seus pais, ficavam à mercê dessas situações, pois diferente
do que se desejava para os homens, os espaços profanos das ruas às mulheres,
principalmente às “moças indefesas” eram negados. Neste sentido, voltamos à
questão dos diferentes mundos. O mundo das mulheres era totalmente diferente do
mundo dos homens, tendo por base esta situação.
Mas
em algum momento, estes dois mundos também teriam que se encontrar e assim,
formar um terceiro “mundo”, ou seja, o mundo do moço que se saciara sexualmente
no meretrício, o mundo da moça pura que se preparara para recebê-lo, com
castidade e por fim, o mundo da meretriz, de vida solta, sexualidade aberta e
sem responsabilidade.
Voltamos
às fontes deixadas pela elite intelectual no Ceará do início do século XX.
Quando se apresentara a cidade de Ipu em diferentes aspectos, ainda utilizando
o modo de escrita engessado que apresentamos no início destas páginas, algo nos
chama a atenção. Quando o autor cala-se diante de uma problemática que assola a
cidade de Ipu e que sem muito interesse em discorrer sobre o assunto, faz uma
denúncia acerca da saúde pública a qual a cidade vivenciava, percebemos que,
mesmo cada um a seu modo se feche em seus espaços, em algum momento, as
consequências dos atos aparecerão e assim, uma nova ordem social se
apresentará.
Vamos
a uma consequência em Ipu, da união destes três mundos:
A syphilis e blennorrhagia e as
moléstias venéreas, em geral communs a toda cidade e a todos os países, não
tendo preferencia de clima, raça, alimentação, etc., no Ipú se encontram com
muita frequência.
As consequências funestas destas
affecções mórbidas, o estudo de suas variadas manifestações pathologicas, não
cabem nos moldes de nossa exposição.
As medidas hygienicas a tomar seriam as
mesmas das outras localidades. Seria utopia querer-se entravar , obstar ou
limitar a acção maléfica de taes moléstias, que sem duvida, representam um
factor importantíssimo na pathologia. Mesmo assim, medidas de alcance geral são
requeridas e o poder competente dellas deve cuidar[4].
Portanto,
o que vamos ter na cidade de Ipu no início do século XX, são algumas neo-famílias
doentes, onde as moças, sem nenhuma experiência sexual antes do casamento, eram
acometidas por doenças venéreas causadas por homens que, pela imposição
machista da sociedade, e sem conhecimento prévio dos perigos a qual estavam
submetidos, adquiriam doenças e contaminavam suas companheiras.
O
reflexo desta junção de mundos, neste sentido, refletiu-se numa questão de
saúde pública, se aceitarmos a fala do autor, principalmente quando ele diz
que:
Os preceitos hygienicos (...) que possam
contribuir para para melhorar o estado actual de cousas da cidade, pelo menos
dando-se –lhe um aspecto mais apreciável e pittoresco, mesmo de asseio, nas
suas principaes artérias, não devem ficar no ouvido e sim restrictamente
observados[5].
Embora
inconsciente, fechados em nossos mundos, criados ou não, nossa sociedade
reflete nossas ações, e isto vem se apresentando desde a formação das cidades e
das sociedades. No caso apresentado, o reflexo se deu negativamente, a partir
da patologia oriunda da junção carnal de três atores sociais diferentes: o
homem virgem, a mulher pura e a meretriz, socialmente desregrada.
[1] ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders:
sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
[2] Ver: FARIAS FILHO, Antonio Vitorino e BARROS, Antonio Iramar
Miranda (orgs.) Nas Trilhas do Sertão: escritos
de cultura e política nos interiores do Ceará. V. II. Sobral: Sertãocult, 2005.
3 Fundado em 04 de março de 1887, é a
mais antiga instituição cultural do Ceará e uma das mais antigas do Brasil em
atividade, com lançamento de Revistas a partir de sua fundação.
|
[4] SOUSA, Eusébio. Um pouco de História (Chronica
do Ipu). Fortaleza: Revista do Instituto Histórico, 1915. p. 217
[5] Idem,
217
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