Nietzsche
é um desses autores que desconserta qualquer leitor, mesmo os mais avisados,
quer dizer, mais preparados. É preciso dizer que não é uma leitura fácil e que
nem o que escreveu está isento de contradições. Sua obra é das mais polêmicas
e controvertidas. Põe em questão nossa maneira de pensar, agir e enxergar o
mundo e, com um martelo na mão, mira em todos os ídolos construídos pela moral,
pela filosofia que chama de socrático-platônica e pela ciência.
Na
minha concepção não se pode morrer sem lê-lo ainda que seja para discordar
dele. O perigo de tal leitura é nos deixar perturbados, nos tirar da inercia,
nos colocar sobre areia movediça. Há algo melhor do que isso?
A
interpretação abaixo é um resumo, simplificado, com linguagem mais acessível,
voltada para o leitor não especializado, de uma resenha que escrevi quando
li Genealogia da moral[1], considerada por muitos especialistas, um dos
principais livros de Nietzsche.
Nietzsche e a Genealogia da Moral
Neste livro o filósofo alemão empreende uma severa crítica à ciência e à
filosofia. Em primeiro lugar, para ele, elas não estão isentas da moral, pelo
contrário, sempre partem de um ponto de vista particular. A questão da verdade
na moral e na ciência são secundários no pensamento de Nietzsche. O mais
fundamental é a questão dos valores e, no seu âmago, os valores morais. Qual o
valor dos valores morais? Essa é a pergunta fundamental da filosofia de
Nietzsche.
Para ele, a crítica dos valores só pode ser feita com base numa perspectiva
extramoral, amoral, imoral ou se situar além do bem e do mal, quer
dizer, para além da moral. Desta forma, a vida é considerada como instinto,
como força, como vontade, como potência, isto é, como vontade de potência. O
que torna possível a genealogia da moral como genealogia da vontade de
potência, que tem como principal objetivo avaliar os valores morais com base na
vida, é a relação intrínseca estabelecida por ele entre moral e vida. O
critério último de julgamento da vida deve partir da própria força que a
institui.
Não
lhe interessa saber se os juízos de valor sobre a vida são verdadeiros ou
falsos, mas avaliar a sua força que institui um tipo de vida. Que tipo de vida
instituiu a moral judaico-cristã? Qual o seu valor?
Genealogia da Moral e Vontade de
Potência
Fazer
uma crítica radical da moral é uma das tarefas essenciais de Nietzsche.
Colocando a questão do valor, Genealogia da moral está
avaliando a sua força. Ao suspeitar do valor da moral, a genealogia pretende
desvalorizar os valores prevalecentes até então. O objetivo central dessa
filosofia é colocar em questão o próprio valor dos valores pelo conhecimento
das condições de seu nascimento, desenvolvimento e modificação. Desta forma,
considera que os valores não são algo em si, não são dados, não têm existência
exterior ao homem, não são um fato, uma realidade e, portanto, como além de
todo questionamento.
A
tese central do livro é a existência de uma dupla origem dos valores morais e
de sua oposição histórica entre dois tipos fundamentais de moral: uma “moral
dos mestres”, dos senhores, e uma “moral dos escravos”, ou uma “moral sadia”,
“natural”, como fala em O Crepúsculo dos ídolos[2], regida
pelos instintos da vida, e uma “moral contranatural” voltada contra os instintos
da vida.
A
moral dos mestres, aristocrática, é uma ética do bom e do mau, entendida como
uma força vital, que define o homem por sua potência, pelo que ele pode e
é capaz de fazer. Ao contrário, a moral plebeia ou dos escravos é um sistema de
juízos que institui o bem e o mal considerados como valores metafísicos,
transcendentes ou transcendentais. No primeiro caso, a vida é definida como
positividade. No segundo caso, é definida como negatividade, mas não porque uma
seja verdadeira e outra falsa, mas porque uma é símbolo de vitalidade, potência,
força, plenitude e a outro símbolo de decadência, diminuição dos valores
vitais, da potência, do vigor.
Colocando
a questão dessa forma, o objetivo central do filósofo da suspeita é
realizar uma crítica radical dos valores morais dominantes na sociedade
moderna. É ela feita com base nos valores da vida, tomando a vida como único
critério de avaliação. Nesse sentido, a ética do bom e do mal, aristocrática,
desempenha o papel de um princípio de avaliação e de modelo de alternativa
crítica aos valores dominantes. O modelo de Nietzsche é a Grécia arcaica,
momento em que, segundo ele, operou os valores aristocráticos e que sempre
significou o apogeu da civilização, onde encontra na arte (na epopeia, na
poesia lírica, na tragédia) os valores que opõe à moralidade. Da mesma forma
que a filosofia socrático-platônica estabeleceu uma ruptura entre o trágico
(instinto) e o racional (lógica), a religião judaico-cristã instituiu uma
ruptura entre ética e moral. Momentos distintos, têm em comum assinalar o
nascimento de um período de decadência.
Desta
forma, a filosofia socrático-platônica e a moral judaico-cristã teriam
transformado o homem vital em animal doméstico, uma ave de rapina em cordeiro.
Teriam transformado o tipo forte de homem num homem fraco, superação das forças
ativas pelas forças reativas, fazendo os próprios fortes assumirem os valores
dos fracos e produzindo um animal doente, decadente.
A
moral judaico-cristã, como moral do fraco, dos valores reativos, dos valores
vitais, teria realizado uma total inversão de valores ao afirmar que os bons
são apenas os miseráveis, pobres, necessitados, impotentes, baixos, sofredores,
doentes, disformes e que os nobres e poderosos são malvados, cruéis, lúbricos,
insaciáveis, ímpios. Desta forma, a moral judaico-cristã ao inverter os valores
positivos da ética aristocrática, expressou o ódio contra a vida, contra o que
é positivo, afirmativo, ativo, na vida. Essa moral, na medida em que nega os
valores da vida, é, para Nietzsche, niilista.
Como
demostra Roberto Machado[3], leitura que nos
serve de baliza aqui, Nietzsche define, em Genealogia da moral,
esse tipo de niilismo com base em três figuras: o ressentimento, a má
consciência e o ideal ascético.
O
ressentimento é o predomínio das forças reativas sobre as forças ativas. O
ressentido é alguém que nem age, nem reage, produz apenas uma vingança
imaginária, um ódio insaciável. Criando um inimigo que considera malvado e
imaginando uma vingança contra seus valores, o ressentido dá sentido à sua
falta de força. Coloca sempre a culpa de sua inércia no outro, é sempre o
culpado do que não pode, do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como
malvado, o ressentido pode então se considerar melhor ou se imaginar bom.
A
má consciência ou o sentimento de culpa tem, para Nietzsche, uma dupla origem.
A primeira é a transformação do tipo altivo em culpado que se deu com o
nascimento do Estado. O Estado, como força repressora, coercitiva, abateu-se
sobre uma população de nômade, selvagem e livre, desvalorizou abruptamente os
instintos, reduzindo esses “semianimais” ao pensamento, à consciência. Esses
instintos vitais, força, potência, voltaram-se para dentro, para o interior,
criaram a interioridade. Essa força voltou-se contra o próprio indivíduo. É,
pois, a interiorização das forças ativas, da vontade de potência, que cria a má
consciência.
A
segunda forma de má consciência é a transformação do ressentido em culpado
realizado pelo padre ascético. O ressentido que é ao mesmo tempo o sofredor
busca um culpado para o seu sofrimento, para sobre ele descarregar todo o seu
ódio. É o padre que ensina que o único culpado desse sofrimento é ele mesmo. A
má consciência é o ressentido voltado contra ele mesmo. É assim que nasce o
pecado.
A
terceira forma de niilismo é o ideal ascético, caracterizado pelo fato de
considerar a vida um erro, negá-la e fazer dela uma ponte para outra vida, a
vida verdadeira. É o ideal ascético que inventa um além para caluniar
um aquém, que inventa um outro mundo para condenar a vida. É a vingança da
vida com a ideia da existência de uma outra vida, melhor que esta.
Assim,
o que caracteriza a moral cristã, ao interligar a noção de ressentido, má
consciência e ideal ascético, é caluniar e envenenar a vida. Desta forma, essa
moral é niilista. Com ela os instintos de decadência dominam os instintos de
expansão da vida, a vontade de nada vence a vontade de viver. Para ela não-ser é
melhor do que ser. Se a essência é ser nada, é não
ser, então essa vida não vale nada, por isso é condenável. Niilista, a
moral exprime uma vontade de nada, de depreciar a vida. É o próprio triunfo das
forças reativas.
Nietzsche,
como dissemos, empreende uma crítica aos valores modernos, porque os considera
niilistas, isto é, dominados por valores morais, pelos valores superiores, da
decadência, pois a moral dos escravos foi vencedora e impera na Europa.
Contra
o enfraquecimento do homem, a transformação dos fortes em fracos é necessário
assumir uma perspectiva além do bem e do mal, ou seja, além da
moral. Para além do bem e do mal não significa para além do bom e mau. É bom
tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência.
Mau é tudo que provém da fraqueza.
[1] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[2] ______. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com
o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[3] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2.ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1999.
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