As cidades invisíveis[1] é um desses livros fenomenais que não se pode morrer antes ler sob
pena de não ter vivido um saboroso prazer indescritível. A maneira como o autor
entende as cidades muito me ajudou na escrita da minha tese - já que nela eu
discutia o espaço urbano - precisamente porque Ítalo Calvino colocou em xeque a
ideia de que houvesse uma homogeneidade na cultura urbana, enfatizando a
complexidade das muitas cidades, como representada por seus diversos habitantes
ou pelos viajantes e estrangeiros que por elas passam.
Além disso, o texto é uma delícia,
podendo ser comparado, com exagero, é claro, às narrativas de Scherazade que
conta, noite após noite, mil e uma histórias saborosas ao sultão, para fugir da
morte. Tal como o sultão se apaixonou por Scherazade, podemos nos apaixonar,
também, não pelo autor de As cidades invisíveis, péra lá!, mas por
suas belas narrativas.
Nesse instigante livro, Marco Polo
descreve para Kublai Khan, a quem serviu durante muitos anos, as incontáveis
cidades do imenso império mongol.
Para além das histórias, o que mais me
ajudou foi perceber e chegar à noção de que as cidades, como a própria
realidade, não são concretas, como uma pedra ou um objeto material. Elas são
“experiençadas”, vividas, sentidas. Desta forma, não existem como algo único,
total, mas em suas multiplicidades.
A cidade, que não pode se resumir a
algo concreto como uma rocha, portanto, tem a sua existência na percepção e nas
imagens que seus habitantes criam dela. Ela só tem existência neste patamar.
Portanto, é uma experiência plural.
As experiências múltiplas se configuram
como a própria realidade, toma o seu lugar. Cada um, cada grupo de pessoas a
representa ou a constrói. A cidade, como a realidade, não supõe nenhuma unidade
ou totalidade e não remete a um único sujeito. Parece ser, para Calvino, uma
construção. Pode-se descrever uma mesma cidade como se fossem muitas outras
cidades. E isso ocorre por pelo menos dois artifícios: o primeiro diz respeito
aos aspectos que o narrador privilegia: sua forma, ruas, povo, esquina,
edificações etc. O segundo, e mais importante, refere-se ao fato de que uma
cidade é vivida, “experiençada”, sentida de formas diferentes por seus diversos
habitantes, viajantes, estrangeiros. Cada um a representa de uma forma
singular. Assim, pode-se falar de uma mesma cidade como se fosse outra,
dependendo de quem narra ou a representa. Creio, esse é um procedimento usado
por Ítalo Calvino, por meio da narrativa de Marco Polo.
A cidade, portanto, só tem existência
em sua relação com os seus habitantes e grupos que a compõe. Cada um deles vê o
mundo e o espaço onde vive de uma determinada forma, cuja ligação é dada por
sua vivência, seus interesses. Cada indivíduo ou grupo representa a cidade
segundo sua visão de mundo e seus interesses ligados à sua vivência.
Volta-se para aspectos específicos da realidade e constrói, ou reconstrói, a
cidade e seu mundo incessantemente e de forma criativa. As pessoas selecionam
aspectos singulares num leque de opções disponíveis em sua cultura e relação
com o seu mundo para representar o local onde vive ou por onde passa.
As cidades são invisíveis porque não
existem materialmente, como unidade ou totalidade que podem ser ditas de uma
vez por todas. Essa metáfora permite pensá-la como construção feita com base
nos significados que representa para cada habitante ou grupo de pessoas. As
ruas, edificações, traçados, esquinas, casas, só adquirem sentido quando
“experiençadas”, vividas e, portanto, estão carregadas de simbolismos para
aqueles que vivem e trafegam por seus espaços. Como pode uma cidade ser
descrita por alguém e essa descrição se colocar no lugar da cidade? A cidade é
apenas uma representação entre as tantas possíveis. E mesmo para quem escuta
uma tal descrição, como faz Khan, a cidade é visualizada e significada de
forma diferente porque entra em contato com outra experiência de vida e
interesses.
As cidades nunca se resumem ao seu
espaço físico, geográfico ou a uma única representação. São invisíveis. É isso
que Calvino quer dizer?
Cada cidade, para Calvino é única, sem
ser total, e contém um pouco de cada uma, porque vividas, e o seu número é
infinito, porque as experiências são igualmente infinitas.
[1] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
0 comentários:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário, opinião e sugestões. Um forte abraço!