O grande escritor russo é muito
lembrado por suas obras da maturidade artística, aquelas escritas na segunda
metade do século XIX, após o seu exílio forçado na Sibéria, como Crime
e Castigo e Os irmãos Karamázov. Hoje, no entanto,
gostaria de falar de seu romance (ou “novela”) de estreia, um anão se comparado
com suas obras-primas, mas que já revela alguns traços característicos de boa
parte de sua produção posterior e do universo literário russo dos anos 1840, momento
em que o romantismo, que soprava da Europa, recebia críticas contundentes dos
realistas russos, como Bielínski.
Gente Pobre
Gente
Pobre é o romance de estreia de Dostoiévski, publicado em 1846, quando
ele ainda tinha 25 anos. Como muitos críticos evidenciaram, é composto na forma
epistolar entre dois personagens (troca de cartas). De um lado, temos Makar
Diervúchkin, um escrevente de meia-idade que trabalha numa repartição pública
de São Petersburgo, e, de outro, uma jovem de nome Várvara. Esta é parenta
distante do funcionário público que a protege após ficar órfã de pai e mãe.
Diervúchkin apresenta-se como timidamente apaixonado por Várvara, mas a
diferença de idade e seu pudor o impede de externar o seu amor e propor uma
união.
Os
personagens centrais são apresentados como dois espíritos delicados, solitários
e frágeis que fazem de sua relação um porto seguro e que os permitem suportar
os infortúnios do “destino”. Diervúchkin acaba reduzido à miséria por causa de
sua amada, a quem cobre de presentes, recorrendo à empréstimos. No decorrer do
romance, passa por angustiantes humilhações em decorrência de sua miséria,
tanto no trabalho, entre seus colegas, quanto na pensão onde mora, e que
procura esconder de todos, menos de Várvara, sua confidente. O que mais lhe
machuca não é a condição de miséria, mas o orgulho ferido. No fim, o sedutor de
Várvara, um homem rico do interior, propõe-lhe casamento. A situação
desesperadora de Várvara e a oportunidade de melhorar de vida acaba levando-a a
aceitar o pedido, para o desespero de seu protetor.
Segundo Joseph Frank[1], o mais impressionante no
romance é a capacidade de Dostoiévski utilizar a forma epistolar para
revelar os pensamentos ocultos de seus personagens. Para ele, o que se lê nas
entrelinhas das cartas, o não-dito, é mais importante do que o que está na
superfície. “A tensão entre o dito e o não-dito é que nos dá acesso à
consciência dos personagens”. Há, para Frank, de um lado, uma luta entre o amor
de Dievúchkin por Várvara e a consciência da impossibilidade e, de outro, uma
batalha para preservar o seu amor-próprio, seu senso de dignidade humana, em
meio à penúria e as humilhações que sofre.
Da mesma forma, há também em Várvara
uma tensão latente entre o desejo de respeitar os sentimentos de Dievúchkin e à
impossibilidade de corresponder às suas tímidas investidas amorosas, o medo de
vê-lo empobrecer por sua causa e, ao mesmo tempo, a alegria infantil com os
presentes que recebe de seu protetor.
No final do livro, anota Joseph Frank,
quando recorre a Dievúchkin para mandar recados referentes ao seu enxoval, “não
se pode deixar de observar um comportamento um tanto leviano e insensível em
Várvara”. [2]
O livro é apresentado por alguns
críticos como romance social, isto é, que dá enlevo a situação de miséria e
penúria da população pobre da Rússia naquele momento. Dostoiévski começa a
escrever o seu primeiro romance no momento em que se desenvolvia na Rússia uma
tendência literária que se fortalecia com o nome de Escola Natural, que buscava
apresentar de forma realista a situação do povo russo, mais voltada para as
questões sociais, as estarrecedoras injustiças em que viviam as populações
oprimidas da cidade e do campo. Desta forma, segundo Fátima Bianchi[3], Dostoiévski foi seduzido por essa literatura, ao
escrever a sua primeira obra. No entanto, não se contentou com as soluções a
que se propuseram os escritores dessa escola.
Em primeiro lugar, o personagem
central, Dievúchkin, vive uma permanente tensão entre as humilhações sofridas,
resultantes de sua condição de penúria, e a defesa de sua dignidade humana,
apontada para a defesa daquilo que parece ser a grande virtude da gente pobre,
a “dignidade”, o valor humano.
No centro da obra, portanto, está o
tema da dignidade humana dos mais pobres por meio da imagem interior de um
homem à beira da miséria. Tenta demonstrar, creio, que nem uma situação
degradante como a vivida por Dievúchkin é capaz de destruir o seu orgulho, sua
honestidade, seus valores. A miséria exterior não é capaz de manchar o seu
coração e suas convicções. A luta contra as forças exteriores é apresentada
como forma de demonstrar a autoafirmação da dignidade do personagem central,
sua sensibilidade e riqueza espiritual.
Embora o autor apresente a pobreza e a
miséria que assolavam grande parte da população russa, sobretudo os
funcionários públicos e as populações urbanas e rurais, estas são apenas a
superfície de sua obra. O que importa é redimir essa população, isto é, mostrar
a sua essência, sua humanidade e a grandeza de suas ações e sentimentos
profundos, apenas apreendido nos detalhes, nos pequenos gestos, nas atitudes
mais triviais, banais.
O tema da dignidade não aparece apenas
no personagem de Dievúchkin, mas também em dois outros: o velho Pokróvski, pai
do estudante, amigo, professor e primeira paixão de Várvara em sua
adolescência, descrito em seu diário, enviado a Dievúchkin; e Gorchkov,
escriturário, recém chegado da província para limpar seu nome de uma causação
de desfalque na repartição em que trabalhou. No primeiro caso, o velho
Pokróvski faz esforços desmedidos para preservar sua dignidade num mundo que o
trata com desdém e superioridade. Com a morte do filho, tenta salvar os seus
livros, símbolos do mundo glorioso da cultura e da probidade moral. No segundo
caso, Gorchkov, imagem arquetípica da miséria, apesar de sua situação
deplorável luta com todas as forças para provar a sua honestidade, limpar o
nome de sua família e manter sua própria honra. Parecia manter-se vivo apenas
para isso. Não à toa morre no mesmo dia em que sua dignidade havia sido
devolvida.
Para Joseph Frank, a narrativa
dostoievskiana constrói “a imagem da mesma luta inútil para manter-se
humanamente à tona em face de circunstâncias desesperadoras; os mesmo tesouros
de sensibilidade, de afetividade e refinamento moral que aparecem nos lugares
mais insólitos – toda parte, pobreza e humilhação, tudo isso em meio à vida dos
bairros pobres E apinhados de São Petersburgo, com seus odores fétidos e sua
habitações cheias de lixo”. [4]
Pobre Gente combinou esses
méritos pictóricos do melhor dos ensaios fisiológicos com uma nova e fiel
compreensão dos tormentos de uma sensibilidade reprimida (...). Essa ‘maneira
diferente de olhar esse mundo de Deus’, o mundo visto de baixo, e não de cima,
constitui a mais importante inovação de Dostoievski (...). O ‘humanismo’ que
Belínski acolheu com entusiasmo na obra de Dostoievski consiste precisamente em
‘ter revelado tudo que há de admirável, nobre e sagrado no mais limitado dos
seres humanos’ Dessa maneira, as circunstâncias críticas e a psicologia dos
personagens de Pobre gente condenam por si mesmas o orgulho e
o preconceito de classe e denunciam a pretensa superioridade dos mais ricos em
relação aos mais pobres”. [5]
Há nos personagens de Dostoiévski
uma tensão entre os aspectos materiais e espirituais, demonstrando que estes
são tão ou mais importantes do que aqueles. Para os infelizes, aqueles que
estão na penúria, as questões espirituais são importantes para minorar os seus
tristes destinos. Há ainda um outro aspecto presente nos romances dostoievskianos
e que diz respeitos à resignação de seus personagens em aceitar a sua condição
como fruto do destino. Personagens como Raskólnikov, de Crime e Castigo,
e Diervúchkin, nunca reclamam sinceramente de seus infortúnios, revelando
uma resignação estoica revoltante.
Até a próxima...
[1] FRANK,
Joseph. Dostoiévski: As sementes da revolta, 1821-1849. 2.ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 188.
[2] Idem, p. 189.
[3] BIANCHI, Fátima. Posfácio. In:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente pobre. São Paulo: Editora 34,
2009.
[4] FRANK, Joseph,
op. Cit, p. 192.
[5] Idem, p.
192-193.
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