Lançamento oficial da ANAN – Associação Nacional de Advocacia Negra. Alesp – São Paulo. |
Uma
notícia, publicada recentemente na imprensa, dando conta da criação de uma
associação de advogados e advogadas negros, me deixou surpreso. Reunindo profissionais de diferentes estados
do país e lançada oficialmente agora, a entidade tem por finalidade combater o
racismo (estrutural), fazendo valer, certamente, a lei que o condena como
crime.
Creio
que ninguém contesta o fato de que o racismo é uma das questões mais sensíveis
que vive a sociedade brasileira e é tema amplamente estudado pela sociologia.
Ele resulta, entre nós, de pelo menos dois fatores: o nosso longo e recente
passado escravista e o estabelecimento, no século XIX, de teorias de base
racial, criadas na Europa, que teve bastante sucesso no Brasil entre fins do
século XIX e décadas iniciais do século seguinte, convencendo intelectuais e a
maior parte da população de que existiam raças superiores e inferiores. Os
negros, índios e asiáticos estariam no segundo caso.
O
atual momento político em que vive o Brasil, de acirramento de propostas
políticas e de embates de ideias, mesmo de estabelecimento de ódios, e sua
exposição inconsequente, tem levado, creio, a atitudes racistas mais abertas. Diz-se
por aí: “muita gente perdeu o medo de discriminar abertamente”, “parece sentir,
mesmo, orgulho disso”. De um lado, isso é perverso, duplamente. Expõe parte da população a um ódio racial
incontido e dramático para quem sofre a discriminação, e, ao mesmo tempo,
revela atitudes abertas de ódio a um grupo de pessoas, numerosas entre nós.
Por
outro lado, há algo de bom nisso. Como assim, algo de bom? Explico. A criação
de uma entidade de advogados negros para combater o que chama de “racismo
estrutural” na sociedade brasileira é resultado dessa onda de racismo aberto.
Só se combate um problema reconhecendo-o como existente.
É sabido que, no Brasil, o
racismo foi sempre, desde o início, disfarçado, o que levou a análises como a
de Gilberto Freyre, em Casa Grande &
Senzala, chegando a propalar a existência, entre nós, de uma espécie
democracia racial. O nosso padrão de colonização, ibérica, católica, por
inúmeras razões, aproximou o europeu do negro, possibilitando a miscigenação. Joaquim
Nabuco e Gilberto Freyre chegaram à conclusão de que a questão racial no Brasil
teria sido resolvida pela miscigenação. Ao mulato, resultado do “amor” entre o
negro e o branco, não reconhecido nem como negro e nem como branco, entre nós, não
era vedada a possibilidade de ascensão social. Os exemplos abundam: Machado de
Assis, Tobias Barreto, José do Patrocínio, André Rebouças e Antonio Lisboa (o
“Aleijadinho”), são apenas alguns exemplos. No entanto, isso quebrou qualquer
possibilidade de reconhecimento, entre as populações de cor, de uma consciência
de pertencer a um grupo discriminado. A ascensão, sempre individual, nega,
desde o princípio, o problema e distancia o negro rico ou remediado da grande
massa pobre!
Carl Degler, historiador
americano, no livro “Nem preto nem branco”, ao analisar o padrão de
relacionamentos raciais no Brasil e nos EUA, resultado de seus processos
históricos singulares, concluiu que eles produziram efeitos diferentes. No caso
brasileiro, o caráter benigno das relações entre negros e brancos, depois da
escravidão, e a possibilidade do mulato (a “saída de emergência”), isto é, da
miscigenação, teria minado a consciência dos negros em reconhecer o preconceito,
em reconhecer-se como grupo discriminado e, portanto, solapou a sua luta por
direitos iguais. Por outro lado, o caráter violento das relações entre negros e
brancos nos EUA, desde o início, não permitindo a miscigenação e o elemento
branco externando abertamente o seu ódio à pessoa de cor, acabou por levar os
negros à construção de uma consciência de pertencimento a um grupo discriminado
e, consequentemente, tal fato teria favorecido a sua lutar por direitos iguais.
O exemplo dos EUA, como sugere
o autor, tem lavado à consciência tardia da necessidade, no Brasil, de leis
compensatórias, para que o negro tenha oportunidades senão iguais, pelo menos
mais favoráveis como meio de diminuir o fosso entre a elite branca e os negros
pobres. Para ele, esse reconhecimento tardio é resultado do caráter benigno das
relações raciais no Brasil. Oferecer ou até mesmo sugerir leis compensatórias
requer, esclarece, reconhecer a discriminação e de que o negro sofre
dificuldades não comparada com nenhum outro grupo. “Isso exigiria a admissão do
preconceito de cor que o mito nacional nega explicitamente”.
Em longo prazo, portanto, as
oportunidades de ascensão individual dos negros e mulatos no Brasil acabaram
sendo prejudiciais ao grupo e reforçou as diferenças de oportunidades,
contribuído para que os seus descendentes permanecessem, até aquele momento, em
que escreve o autor americano, na base da pirâmide social. É assim ainda hoje
aqui. Com os EUA teriam acontecido algo inverso. A violência da discriminação e
a segregação, logo após o fim da escravidão, acabaram favorecendo à tomada de
consciência dos negros em sua luta. Esta redundou em leis de compensação que
garantiram acesso dos negros ao sistema educacional, ao mercado de trabalho e à
cidadania, diminuindo o fosso entre negros e brancos.
Nesse sentido, creio ter
explicado o mal-entendido.
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