segunda-feira, 23 de março de 2020

A PANDEMIA DO VÍRUS E A EPIDEMIA DA PESTE BUBÔNICA (PARTE III)





ERA PRECISO ENCONTRAR CULPADOS
O movimento primeiro e mais natural era o de acusar outros. Nomear culpados era reconduzir o inexplicável a um processo compreensível. Era também pôr em ação um remédio, impedindo os semeadores de morte de continuar sua obra nefasta. Mas é preciso descer a um nível mais profundo: se a epidemia era uma punição, era preciso procurar bodes expiatórios que seriam acusados inconscientemente dos pecados da coletividade.
Os culpados potenciais, sobre os quais a agressividade coletiva recaiu, foram, em primeiro lugar, os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não estavam bem integrados a uma comunidade, seja porque não queriam aceitar suas crenças – é o caso dos judeus -, seja porque era preciso, por evidentes razões, isolá-los para a periferia do grupo – como os leprosos – seja simplesmente porque tinham vindo de outros lugares e por esse motivo eram em alguma medida suspeitos.
Os judeus são acusados de terem envenenado as nascentes dos rios (contaminação das águas).
A peste negra eclodiu em uma atmosfera já carregada de antissemitismo. De início, suspeitos de querer dizimar os cristãos por meio de veneno, em seguida, os judeus foram bem rapidamente – e por vezes muito cedo, como na Espanha – acusados de ter semeado o contágio por meio desses envenenamentos. Surge, no período, a caça histérica às feiticeiras e feiticeiros.

Morte Rápida

Quando a peste era pneumônica primaria, iniciava-se brutalmente, progredindo no organismo sem encontrar defesa. A morte era certa em dois ou três dias depois do começo das perturbações (100% dos casos).
Quando a forma bubônica era clássica, manifestava-se de imediato por uma febre de 39-40º, com um quadro clínico impressionante – pulso rápido, conjuntivas dilatadas, olhar brilhante, vômito, boca seca. Os bubões (inchação dos gânglios) só se desenvolviam em seguida, ao fim de 48 horas. Mas podiam não aparecer.

Uma ruptura Desumana

As cidades ficaram sitiadas pela doença, posta em quarentena, cercadas pelas tropas, confrontadas com a angústia cotidiana e obrigada a um estilo de existência em ruptura com aquele a que se habituara. Os quadros familiares eram abolidos. A insegurança não nascia somente da presença da doença, mas também de uma desestruturação dos elementos que construíam o meio cotidiano. Antes de mais nada, a cidade ficava anormalmente deserta e silenciosa, muitas casas desabitadas. Mas, além disso, apressavam-se em expulsar os mendigos: associais inquietantes, não eram eles semeadores da peste? E depois, “sujos e espalham odores poluentes”.
Por precaução, também, matam-se em massa os animais: porcos, cães e gatos.
Cortados do resto do mundo, os habitantes afastavam-se uns dos outros no próprio interior da cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evitava-se abrir as janelas da casa e descer à rua.
O próximo é perigoso sobretudo se a flecha da peste já o atingiu: então, ou era encerrado em sua casa ou enviado às pressas para algum lazareto situado fora dos muros da cidade. O tempo da peste foi o da solidão forçada.
Abandonados em sua agonia, os contagiados de qualquer cidade da Europa entre os séculos XIV e XVIII, uma vez mortos, eram acumulados desordenadamente, como cães ou carneiros, em fossas imediatamente recobertas de cal viva.
As atividades familiares eram interrompidas, havia silêncio na cidade, solidão na doença, anonimato na morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de tristeza. Para o historiador Jean Delumeau, todas essas rupturas brutais, como os usos cotidianos, foram acompanhados de uma impossibilidade radical de conceber projetos de futuro, “pertencendo a ‘iniciativa’ doravante, inteiramente à este (...) desestruturando o ambiente cotidiano e barrando os caminhos do futuro, a peste abalava assim duplamente as bases do psiquismo tanto individual quanto coletivo.

Os Desregramentos

Com o avanço da morte, por todo lugar e a certeza de que ela estava próxima daqueles que ainda se mantinham vivos, as bebedeiras e desregramentos se tornaram frequentes, inspirados pelo desejo frenético de aproveitar os últimos momentos de vida. Era o carpe diem vivido com uma intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um horrível transpasse.
A exaltação descontrolada dos valores da vida era uma maneira de escapar à insuportável obsessão da morte. Tais atitudes se explicam pelo desmoronamento das estruturas familiares, pela certeza da morte iminente, pela alteração das relações humanas, pela angustia permanente e pelo sentimento de impotência.

Para saber mais leia:
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

← ANTERIOR PROXIMA → INICIO

0 comentários:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário, opinião e sugestões. Um forte abraço!