ERA
PRECISO ENCONTRAR CULPADOS
O movimento primeiro e mais
natural era o de acusar outros. Nomear culpados era reconduzir o inexplicável a
um processo compreensível. Era também pôr em ação um remédio, impedindo os
semeadores de morte de continuar sua obra nefasta. Mas é preciso descer a um
nível mais profundo: se a epidemia era uma punição, era preciso procurar bodes
expiatórios que seriam acusados inconscientemente dos pecados da coletividade.
Os culpados potenciais,
sobre os quais a agressividade coletiva recaiu, foram, em primeiro lugar, os estrangeiros, os viajantes, os marginais e
todos aqueles que não estavam bem integrados a uma comunidade, seja porque não
queriam aceitar suas crenças – é o caso dos judeus
-, seja porque era preciso, por evidentes razões, isolá-los para a periferia do
grupo – como os leprosos – seja
simplesmente porque tinham vindo de outros lugares e por esse motivo eram em
alguma medida suspeitos.
Os judeus são acusados de
terem envenenado as nascentes dos rios
(contaminação das águas).
A peste negra eclodiu em uma
atmosfera já carregada de antissemitismo. De início, suspeitos de querer
dizimar os cristãos por meio de veneno, em seguida, os judeus foram bem
rapidamente – e por vezes muito cedo, como na Espanha – acusados de ter semeado
o contágio por meio desses envenenamentos. Surge, no período, a caça histérica
às feiticeiras e feiticeiros.
Morte Rápida
Quando a peste era
pneumônica primaria, iniciava-se brutalmente, progredindo no organismo sem
encontrar defesa. A morte era certa em dois ou três dias depois do começo das perturbações
(100% dos casos).
Quando a forma bubônica era
clássica, manifestava-se de imediato por uma febre de 39-40º, com um quadro
clínico impressionante – pulso rápido, conjuntivas dilatadas, olhar brilhante,
vômito, boca seca. Os bubões (inchação dos gânglios) só se desenvolviam em
seguida, ao fim de 48 horas. Mas podiam não aparecer.
Uma ruptura Desumana
As cidades ficaram sitiadas pela
doença, posta em quarentena, cercadas pelas tropas, confrontadas com a angústia
cotidiana e obrigada a um estilo de existência em ruptura com aquele a que se
habituara. Os quadros familiares eram abolidos. A insegurança não nascia
somente da presença da doença, mas também de uma desestruturação dos elementos
que construíam o meio cotidiano. Antes de mais nada, a cidade ficava
anormalmente deserta e silenciosa, muitas casas desabitadas. Mas, além disso,
apressavam-se em expulsar os mendigos: associais inquietantes, não eram eles semeadores
da peste? E depois, “sujos e espalham odores poluentes”.
Por precaução, também,
matam-se em massa os animais: porcos, cães e gatos.
Cortados do resto do mundo,
os habitantes afastavam-se uns dos outros no próprio interior da cidade
maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evitava-se abrir as janelas da casa
e descer à rua.
O próximo é perigoso
sobretudo se a flecha da peste já o atingiu: então, ou era encerrado em sua
casa ou enviado às pressas para algum lazareto situado fora dos muros da
cidade. O tempo da peste foi o da solidão forçada.
Abandonados em sua agonia,
os contagiados de qualquer cidade da Europa entre os séculos XIV e XVIII, uma
vez mortos, eram acumulados desordenadamente, como cães ou carneiros, em fossas
imediatamente recobertas de cal viva.
As atividades familiares
eram interrompidas, havia silêncio na cidade, solidão na doença, anonimato na
morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de tristeza. Para o
historiador Jean Delumeau, todas essas rupturas brutais, como os usos cotidianos,
foram acompanhados de uma impossibilidade radical de conceber projetos de
futuro, “pertencendo a ‘iniciativa’ doravante, inteiramente à este (...)
desestruturando o ambiente cotidiano e barrando os caminhos do futuro, a peste
abalava assim duplamente as bases do psiquismo tanto individual quanto
coletivo.
Os Desregramentos
Com o avanço da morte, por
todo lugar e a certeza de que ela estava próxima daqueles que ainda se
mantinham vivos, as bebedeiras e desregramentos se tornaram frequentes,
inspirados pelo desejo frenético de aproveitar os últimos momentos de vida. Era
o carpe diem vivido com uma
intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um horrível transpasse.
A exaltação descontrolada
dos valores da vida era uma maneira de escapar à insuportável obsessão da
morte. Tais atitudes se explicam pelo desmoronamento das estruturas familiares,
pela certeza da morte iminente, pela alteração das relações humanas, pela
angustia permanente e pelo sentimento de impotência.
Para
saber mais leia:
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
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