Folhetim de Gabriel Arcanjo
Certa feita estava eu na
bodega de meu pai, na rua que hoje recebe o seu nome, quando chegou a mim velha
e asquerosa freguesa: era a Banana, anciã sexagenária, corcunda e de
penetrantes olhos azuis. Tudo nela era repelente e horroroso, os cabelos
esvoaçantes e grisalhos, a boca asquerosa e murcha, a pele enrugada e branca, o
andar cambaleante e trôpego. Tudo era feio, terrivelmente feio. Menos seus
olhos de um azul esmeralda, um azul oceânico. Por trás daquela mascara
mortuária de dor e de tristeza, envelhecida pelo tempo, era belo o olhar. Era
jovem, falava coisas numa língua eterna, medonha, tristonha e celeste. Havia
naquele olhar de oceano uma jovialidade de criança, uma tristeza tão grande, uma
dor tão medonha, uma nobreza tão distinta que gelou minha alma de garoto
imberbe no instante em que nossos olhos se cruzaram! A velha era um enigma, com
seus olhos de gavião, faróis em alto mar tenebroso, estrela Dalva em manhã de
outono. Os olhos da velha anciã eram bem mais jovens do que ela. Diante daquele
olhar a fatalidade da existência me veio à mente, e o tempo, que corre como um
rio revolto na direção do abismo, falou comigo com sua voz de esfinge: - Este é
o destino do Homem! Uma besta pensante à beira do abismo!
Eu
disse a velha: - Dona Maria, não beba não, a senhora pode morrer! E ela me
falou, encarando-me como uma harpia monstruosa saída da Odisseia: “-Jerônimo, a gente morre é em vida! Eu já
morri há muito tempo! Este corpo que tu vê é o cadáver da bela Maria Alves,
morta há muito tempo, antes mesmo de tu nascer!” Aquelas palavras ecoaram em
minha memória daquele dia em diante, e eu recordo delas até hoje, com a força
avassaladora de um maremoto: “-Eu já morri há muito tempo!”.
A velha harpia disse em
tom zombeteiro que “-quando eu era novinha um rapagão assim como tu num me
escapava não! Eu ia me agarrar contigo, mostrar o que a vida tem de bom!” e riu ruidosamente. Eu me afastei enojado. Bebeu seu trago de cachaça, cuspiu
ruidosamente no chão, e bateu com o pé esquerdo em cima do cuspe dizendo
palavras “mágicas” em tom de escárnio, de provocação e evocando Exu e Tranca
Rua: “-Cachaça jiribiba, primeiro vai cantada, depois vai bibida, em nome do
pai, do filho e do espírito santo, amém!” e entornou o copo novamente de modo
voraz. Velha meretriz abandonada pelos amantes quando ficou feia e velha demais
para a cobiça dos homens da cidade, vivia de vender bananas na estação do trem
(vinha daí o apelido), e de fazer “despachos” para as pessoas mais
supersticiosas (por uns trocados, ela arranjava marido para mulher abandonada,
tirava mau-olhado, ajeitava “espiéla caída”, arrumava o “vento” de criança com
quebrante, e com uma porção misteriosa fazia mulher barriguda abortar).
Depois
de anos atormentado pela história da vida desta figura assombrosa que mais
parece saída das páginas de um romance de Jorge Amado, resolvi dividir com os
meus leitores a vida da Banana. Para legar a posteridade esta existência fatal.
Não se iluda, apesar da maioria dos nomes serem fictícios (medida para me
proteger da sanha vingadora dos parentes da anciã), esta é uma história real.
Vamos à narrativa: Havia
na Ipu dos anos inicias do século XX práticas e costumes sexuais que nossos avós,
por razões ligadas a excessiva moralidade da época, não deixaram registradas em
livros, jornais, ou revistas, e por isso, somos erroneamente levados a acreditar
que nossos antepassados eram “santos”. Pois vou contar-lhes agora uma história
que ilustra bem o quanto nos iludimos a cerca da sexualidade de nossos avós: um
influente capitalista, “coronel” abastado (José
Alves de Araújo), de “ilustre família local”, dona de terras e de ponto no
mercado, insatisfeito com a frieza de sua esposa, encantou-se pelas graças de
carnuda e desinibida cabocla sertaneja da periferia, e passou a cortejá-la com
olhares maliciosos e com palavreado de duplo sentido: “-Olha, na minha fazenda
tem moradia para uma caboca ‘boa’ como você!”, dizia o galanteador, quando se
via sozinho em seu comércio com aquela cunhã faceira que lhe tirava o sono.
“-Aqueles seios de mamão maduro! Aqueles quartos de melancia grande! Aquela
boca de manga jasmim! Ai de mim, que não te tenho nos braços, Nêga manhosa
cheirando a jasmim! Um dia eu te roubo, cunhã danada! Te carrego pros matos, pra
morar comigo no meu sítio do Escondido, longe das arengas da megera da minha
mulher!” Dizia o comerciante, em cochicho, ao pé do ouvido de Maria de Jesus, quando lhe permitiam os
fregueses de sua venda no mercado.
Casado há dez anos com
uma “mulher de família” (sua prima), o galanteador José Alves sonhava com
outros prazeres, em outros braços, pois havia coisas que só se fazia com mulher
perdida, mulher de “vida fácil”, mulher “sem vergonha”: onde já se viu, homem
casado desrespeitar a esposa, propondo-lhe a posição cachorrinho, o “frango
assado”, o cavalinho, o sorvete, ou coisa que o valha, para “incrementar” o
casamento! Era pra isso que havia as putas do cabaré! A esposa era sagrada, com
ela não se fazia sexo, se fazia o ato abençoado da procriação entre um
Pai-nosso e uma Ave-Maria. Já com as putas, o homem procurava o verdadeiro
prazer, o gozo supremo, o delírio do amor carnal. “- Deus que me defenda, Zé!
Vai te confessar! Tu tá é com o Cão nos couros!”, disse a esposa, nas poucas
investidas do marido faminto. Você não se casou com uma puta, coronel! Coronel
ele já nem era, se fosse, como seu pai, a coisa era diferente. O velho teve pra
mais de trinta filhos, todos eles fecundados nas comadres e nas afilhadas que ele abrigava em suas terras! Mulher
que morava nas terras do velho coronel Felix José de Sousa já se sabia, ele
comia mesmo! Era tiro e queda! Não tinha escapatória. E os maridos e filhos que
aguentassem os chifres!
Mas o José não conseguia
repetir a fama do pai. Do pai mesmo ele só herdou uma pequena fatia das terras
e o apelido de coronel. A fortuna da família fora dividida entre os 15 filhos
legítimos de seu pai com sua mãe. Maria de Jesus, seu “sonho de consumo”, era
uma cunhã sem eira nem beira, vítima maior de um sistema social opressivo, que fazia
dos pobres servos da gleba, vassalos submissos vivendo de favores do patrão. Pedindo
“abença meu padim”, trabalhando de graça pros ricos, sendo “eleitores” no
rebanho dos candidatos favoritos do patrão, e assistindo aos filhos do patrão
vir nas férias escolares para lhes perseguirem as filhas donzelas, ou a mulher,
ainda fogosa, nas trilhas e arbustos da fazenda. A mulher pobre, se bela, era
um prêmio de caça para as cimitarras dos jovens moços, sedentos de sexo. Numa
época em que o hímen era um totem sagrado, mulher descabaçada era prejuízo
certo, não conseguia arrumar casamento, ou se arranjava era com homem viúvo.
Como o pobre do morador poderia pressionar o patrão para reparar o “erro” do
filho do “homi” com sua filha donzela? Não tinha jeito, era casá-la na surdina
com o primeiro infeliz que aparecesse!
Mas voltando ao caso
mencionado, Maria aceitava as “provocações” de José sem muita resistência; ao
contrário, retribuía-lhe os olhares insinuantes, os gracejos atrevidos, e sorria
baixinho dizendo: - Deixe disso seu Zé!
Eu sou uma moça-donzela! Comigo só depois do casamento! E entre os sacos de
farinha e rapadura o Dom Juan do Ipu vez ou outra conseguia arrancar carinhos
da amante arredia: um beijo roubado na boca, uma mão boba nos seios, um sussurro
ao ouvido, e ele conhecia ali, em sua mercearia, as portas do paraíso na terra.
–Volte amanhã, que eu tenho um presentinho pra ti, Nega! (Nega era o apelido de
Maria) -Volto não! O senhor tá é mal intencionado! Tô não, Nega!
Não
deu outra, em pouco tempo José Alves
arrumou para a cabocla casa, comida e “roupa lavada”, transferiu o pai, a mãe e
os irmãos da moça para as suas terras, no Escondido. O pai, um caboclo leal ao
patrão, nada disse quando percebeu os galanteios de Zé para a filha
adolescente: Isso é intriga de gente fofoqueira, mulher! E é meu cumpade! No mato-a-pasto do quintal, num fim de semana
qualquer, enquanto a esposa assistia a missa dominical com o padre Gonçalo, Seu
Zé pulou a cerca e foi “cobrar o aluguel”: - Vem cá, Nega! E agarrou a Nega pelo
braço, abraçando-a por trás, nas ancas, como cobra sucuri. Vem cá Nega! O
cumpade Honório não tá, ne? Num tá
não sinhô! Hoje tu me paga as raiva que tu me fez lá no mercado, Nega! E
agarrou Maria com seu abraço de sucuri, metendo a mão por baixo da saia! Vem cá
Nega! Faltava-lhe o fôlego, o coração a ponto de explodir. Vem cá Nega! José e Maria se agarravam, se misturavam, um
querendo entrar no outro, um querendo comer o outro. Vem cá Nega! Em volta dos
amantes, o dia era testemunha, a relva era testemunha, as vacas eram
testemunhas. Vem cá Nega! (Faltava-lhe o fôlego!). E José, que era inércia,
virou vulcão: Ai, ai, Nega safada! E o dia fez-se gozo, e o gozo fez-se rio, e
o rio fez-se chuva num José lajeiro seco, de sol a pino, na caatinga braba do
verão. Ai, ai, nega safada! Eu sei que morro! Vem cá minha pombinha! Dá aqui
este cangote, Nega danada! E ali, naqueles seios de mel, naqueles olhos de lua,
naquelas pernas de mulher-dama, o Zé Alves redescobriu a alegria de viver: -Ai
meu Deus, que cunhã boa!, dizia ele, num gozo e num desmaio, agarrado à cintura
de Maria, como um náufrago no mar.
Continua...
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