FOLHETIM DE GABRIEL ARCANJO
A justiça dos costumes
Atado ao pescoço e pelas
mãos numa corda que se prendia à sela da montaria de um dos três policiais, e
acompanhado de perto pela escolta sinistra dos homens do coronel Manoel Marinho,
Joaquim Catunda seguiu na direção do Ipu para enfrentar julgamento. Estava
visivelmente arrependido. “- Tu inda vai, safado, arrancar cabaço de moça
donzela?” E foi neste passo tardo, sôfrego, e ao mesmo tempo lento que a cidade
fora acordada na antemanhã do dia seguinte, quando a tropa de oito homens escoltava
o infeliz moribundo. Era Joaquim Catunda, agregado do coronel Antonio Soares,
sendo exibido nas ruas da cidade como um troféu pelos homens do coronel
Marinho. Seu corpo martirizado, com olhos inchados, quase não se deixou
reconhecer: “- Negrada, é o disgraçado do Joaquim! Mata esta peste!” Fora sua
sina reviver, em cores vivas e fortes, 52 anos após a abolição da escravatura,
a triste sina do flagelo de sua gente.
Naquela
manhã seca de setembro, debaixo do chicote de Sete Mortes a população da cidade
do Ipu, que até então nutria ódio profundo pelo estuprador, deixou de lado este
sentimento para sentir por ele certa piedade. Piedade se sente pelos que sofrem
castigos vorazes! Pelos que apanham de chibata! Pelos que morrem a morte dos
santos e dos mártires! De cima de seu cavalo negro o assassino Sete Mortes dá
uma ordem direta a seus cabras, “- Metam a chibata!”, e até a polícia obedece: “-
Já chega, bota ele na carroça, e leva pra cadeia!” disse o delegado, Valdemar
Feitosa.
A cadeia do Ipu havia
sido concluída há cerca de três anos, pelos trabalhadores da seca de 1932, na
gestão do então prefeito Joaquim de Oliveira Lima. Possuía ela paredes grossas
e muros altos, tão altos que dificilmente um homem que se atirasse ao chão de
sua cumeeira poderia escapar ileso de tão alta queda. Distante da sede da
povoação, a cadeia do Ipu parecia uma sentinela em vigília atenta sobre a
população paupérrima e perigosa do Alto dos Quatorze, localizada ao sul da
cidade. Suas muralhas eram imponentes, inexpugnáveis, lembrando mesmo a
proeminência dos casarões dos homens mais poderosos da região, como a
residência do coronel Thomaz Corrêa, ou mesmo o palacete do finado Senador
Pompeu, em Sobral.
Logo que soube que seus
homens haviam capturado o estuprador, Manoel Marinho desceu de seu sobrado,
para ir, com mais cinquenta agregados, à cadeia da cidade. O boato da captura
correu a cidade e a feira de quinta se desfez, pois todos queriam ver o infeliz
prisioneiro. O coronel gostou quando viu a multidão que se formou diante da porta
da delegacia. Sentiu-se um titã invencível quando de sua montaria ergueu a mão
direita pedindo silêncio e proferiu inflamado discurso: “- Este cabra safado
vai pagar pelo que fez! Ele vai saber o que é que acontece com cabra que mexe
com moça que é protegida pelo Coronel Antonio Manoel Marinho de Sousa! A
multidão deu vivas. Empolgado, o coronel adentrou o estabelecimento com o
chicote em uma das mãos e o revolver na outra. A cada passo sentia-se a
encarnação da justiça. Os policiais arredaram caminho paralisados pela hercúlea
figura do titã do sertão.” - Sim, seus fela-da-puta, saiam da frente!” No tempo
de meu pai e de meu avô, eram os Melos, os Marinhos, os Martins e os Aragão que
mandavam no Ipu! Agora estes policiaiszinhos de merda querem lhe dizer o que
que é certo e o que que é errado! Não se pode nem mais manter uns
cabras-valentes abrigados em suas terras, que a polícia vivia querendo
prendê-los! Seus felá-das-puta, saiam da frente!” Este caboco vai pagar pelo
que fez!”
Sacou do revolver, deu
dois tiros para o alto, instigando ainda mais o furor da multidão espavorida, e
adentrou a delegacia (que policial seria louco o bastante para tentar barrar a
marcha do Coronel Marinho?). Desapareceu nos corredores da cadeia com seus
cabras, em meio a três policiais atônitos, um escrivão impotente e um delegado
complacente. De dentro do prédio ouviram-se gritos desesperados e juras de
maldição. Vários tiros foram disparados, um cão correu ao terreiro, os pássaros
dispararam em revoada, em seguida fez-se um silêncio enlouquecedor, seguido por
um berro que parecia saído das masmorras do Inferno: “-Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiii”
e fez-se silêncio novamente. Um silêncio de morte. Ouviram-se passos lentos, de
botas de couro, com o tilintar de esporas de metal tinindo no chão.
A porta de ferro da
cadeia abriu-se. Primeiro saiu Sete Mortes e seus homens, todos bramindo facas,
revolveres e espingardas! Depois veio o coronel Marinho, gigantesco em sua
soberba! Seu um metro e setenta de estatura haviam se transformado em três
metros de altura. Montado em seu cavalo negro, parecia capaz de desafiar o
próprio Cão no Inferno! A fumaça que saia de seu revolver desenhando figuras
sombrias no ar lembrava uma cobra sinistra a subir para o céu! Seu chapéu de
palha lhe dava um ar tenebroso. Seus olhos azuis possuíam um brilho maligno,
que lembravam os olhos flamejantes e amedrontadores de um gavião. Ele sorria
com o canto da boca. Sua desbotada camisa de brim azul lhe parecia uma farda surrada
e honrosa da velha e extinta Guarda Nacional! A praça em frente à cadeia estava
tão admirada pela imponência do velho proprietário e seus homens, que
permanecia muda até então. A multidão prendia o fôlego, esperando o tritão
falar. Foi quando o coronel ergueu o gládio e, num gesto de general em batalha,
deu seu brado de guerra: “- Fela-da-puta!! Tu nunca mais vai comer mulher
nenhuma!!”
Numa das mãos trazia a
velha espada enferrujada da Guarda Nacional, espada que fora de seu avô, e na
outra um estranho e sinistro troféu. Fitou a multidão emudecida. Um rasgo de
fúria e de vaidade lhe percorreu a espinha. Lembrou-se da figura hercúlea de Dom
Pedro I (ou será Dom Pedro II?) no dia da Independência do Brasil, que ele vira
nos livros de história e, num gesto enérgico, louco, e vingador erguendo o
gládio e gritando em plenos pulmões no ar da manhã, deu vivas aos Martins, aos
Marinhos e ao Partido Republicano Cearense, e atirou no chão empoeirado, aos
pés da multidão espavorida, os ovos de Joaquim Catunda.
Continua...
OBS: O autor adverte que os fatos e
nomes aqui citados são ficção, e que qualquer semelhança com fatos e nomes
reais são mera coincidência.
Pergunto: Mas a ficção não se alimenta da "realidade"? Ficção é mentira ou uma estratégia narrativa para falar da "realidade"? A história não é uma forma de ficção ou a ficção não é uma forma de contar uma história?
Fiquei extremamente surpresa com seu blog. Vi um conto como chamavam naquela época, sobre meu bisavô Coronel Marinho. Tenho sede pela história dele, mas infelizmente não sei por onde começar.
ResponderExcluirParabéns meu amigo.