Na
quinta feira, 24 de julho, foi lançado, no auditório da escola Profissional de
Ipu, o livro “Nas trilhas do sertão: escritos de cultura e política nos
interiores do Ceará (1850-1930)”. Abaixo
trazemos uma análise da obra que é, na verdade, a sua apresentação, escrita
por mim. Os interessados em adquiri-lo basta entrar em contato com um dos
autores.
APRESENTAÇÃO
Este
livro é composto por uma coletânea que reúne seis textos historiográficos e que
são resultados de recentes pesquisas levadas a cabo no âmbito da academia. Há,
no entanto, um fio condutor que permite reuni-los numa mesma obra.
Em primeiro lugar, todos falam de um
lugar que no passado recente era conhecido como “zona norte” e que tinha nos
trilhos da ferrovia os fios que teciam e fortaleciam os deslocamentos, a
circulação de mercadorias, livros e ideias. Do porto de Camocim, no litoral
norte, à cidade de Ipu, ao pé da fértil Serra da Ibiapaba, o trem formava um
caminho de muitas idas e vindas e contribuía enormemente para imprimir
transformações sentidas por seus habitantes de modo bastante semelhante e ao
mesmo tempo singular.
Em segundo lugar, os autores desta obra parecem partilhar
de um mesmo universo teórico-metodológico. De um lado, não consideram a
história como uma ciência objetiva, capaz de trazer a verdade do passado. De
outro lado, também não aceitam a ideia de ela não passar de uma construção
linguística, destituída de qualquer referencial. Considera-se, em última
instância, que a história é, também, em parte, uma construção do historiador,
mas que se faz com base em uma operação bastante complexa, própria do campo
historiográfico e, não podendo ser resumida, primeiro, a mera ficção, quer dizer, a uma narrativa
construída unicamente pela imaginação do pesquisador, embora se pareça com a
realidade e se alimente dela, ou, segundo, a apenas e unicamente uma estratégia
narrativa, um jogo de prefiguração linguística, como defende Hayden White[1].
Portanto,
o leitor encontrará aqui reflexões e interpretações sobre o passado que partem
de um trabalho de garimpo, feitas por historiadores que reconhecem o valor da
técnica, de uma operação complexa, própria de sua disciplina, mas que não se
fecha no seu casulo, sobre si mesma, considerando a sua análise como a única
possível sobre o passado.
As
histórias contadas aqui são apenas versões possíveis de outrora. A história, é
também, como defende Antonio Paulo Rezende, “reescrita na leitura de cada um” [2].
No primeiro capítulo, escrito em conjunto por Raimundo
Alves de Araújo e Reginaldo Alves de Araújo, “Ceará do século XIX: uma ‘coucha
de retralhos’ ainda a ser cosida”, os autores discutem sobre a formação da
ideia de cidadania, nação, estado e identidade no interior do Ceará na primeira
metade do século XIX e como o Estado brasileiro, para se fazer presente nos
locais mais recônditos, buscou o apoio das famílias proprietárias de terras,
que estabeleciam a lei, a ordem, a punição e o crime, sancionando governos
locais autônomos, que impunham o poder com base na tradição de mando herdada
dos privilégios oriundos das primeiras famílias ali instaladas. Desta forma, o
controle do voto, das terras, bens, da justiça e dos espíritos estiveram nas
mãos de famílias poderosas, particulares, se constituindo como um entrave aos
valores liberais e dispositivos jurídicos do próprio estado, em transformação,
e da cidadania, em meados do século XIX.
No segundo capítulo, Denis Melo, partindo da aproximação
entre Literatura e História, analisa os sentidos conferidos pelas profecias de
Frei Vidal da Penha, um capuchinho italiano que passou por Sobral em fins do
século XVIII, com base em sua obra literária, O Dragão, onde defendeu o fim dos tempos e a noção de que a
Catedral da Sé era uma Cama de Baleia.
No terceiro capítulo, Francisco Petrônio Peres Lima e
Carlos Augusto Pereira dos Santos analisam as práticas e representações levadas
a cabo pela experiência do Círculo Operário de Ipu, fundado em 1932, sob o
apoio da Igreja Católica local e que buscou orientar suas ações com base em um
projeto de sociedade voltado para os valores da religiosidade e para moldar a cultura
operária entre os anos de 1932 e 1946, com a preocupação, ainda, de barrar a
influência comunista, forte em todo o país naquele momento.
Os autores propõem analisar e discutir a sociedade
Ipuense daquele período, levando em consideração os espaços e conflitos na
construção do modelo católico circulista dos trabalhadores, momento em que a Igreja
se utiliza de estratégias morais e espirituais para combater a “ociosidade”,
capaz de desvirtuar os trabalhadores de seus verdadeiros papéis, e defender os
valores do trabalho, contra a influência de ideologias como o comunismo.
No quarto capítulo,
intitulado “Eusébio de Sousa e a construção da narrativa histórica: o caso de
Ipu-Ce”, proponho discutir como Eusébio Neri de Sousa, pernambucano, bacharel
em direito, historiador e juiz da Comarca de Ipu entre os anos 1913 e 1918,
construiu uma narrativa história que falava da “evolução da civilização” local
rumo ao progresso e como e por que a sua narrativa histórica foi eleita como a
“história oficial” do município de Ipu e a mais digna de ser ensinada à
população.
No capítulo seguinte, Antonio Iramar Miranda Barros analisa
como a sociedade Ipuense dos anos iniciais do século XX, momento de
transformações diversas, se comportava frente às práticas sexuais desenvolvidas
com a fundação do famoso cabaré da rua da Mangueira, local de confinamento das
meretrizes após sua expulsão do centro da cidade, pelas autoridades locais, e
onde exerciam o seu ofício, seduzindo seus futuros clientes, e consumando o ato
nas casinhas da Rua do Progresso, bem próximas ao templo sagrado do Quadro da
Igrejinha (área “nobre”). O autor demonstra como a prostituição e o cabaré
eram, a um só tempo, condenados pela moral da assim chamada “melhor sociedade”
e necessários para aplacar, de um lado, o desejo sexual dos jovens e manter, de
outro lado, a honra, a virgindade da mulher feita para o casamento. Neste jogo
contraditório e de papeis bem definidos a meretriz e o meretrício eram
condenados e aceitos ao mesmo tempo.
Finalmente, fechando a obra, Reginaldo Alves de Araújo analisa
as relações existentes entre as instituições do Estado brasileiro, em formação,
e as elites que viviam na região do Acaraú, no Ceará, em meados do Século XIX.
O seu objetivo é entender as formas de atuação dos dispositivos estatais nos
“sertões”, com destaque para as contradições entre os novos valores defendidos
pela ordem (a civilização, o disciplinamento, o respeito aos dispositivos
jurídicos), a cultura das elites locais e de seus habitantes, ligada à tradição,
ao compadrio, à troca de favores e ao clientelismo. Embate que parece estar na
raiz de nossa formação.
Antonio Vitorino Farias Filho. 17/07/2013
[1] WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do
século XIX. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Neste
livro instigante, Hayden White propõe uma análise da, assim chamada por ele,
“consciência histórica do século XIX”. Aqui, o autor discute as principais
obras dos historiadores do século XIX, Tocqueville, Michelet, Ranke e
Burckhardt, e dos filósofos da história do mesmo período, Hegel, Michelet, Marx
e Croce. Inova ao propor uma interpretação sobre a metodologia do trabalho
histórico, que não consiste em discutir as escolas históricas, como os
estudiosos estavam acostumados a fazer, mas com base nas estratégias narrativas
que cada autor leva a cabo, em sua produção e discussão do campo. Para tanto,
se vale do auxílio de instrumentos conceituais da linguística e da crítica
literária, isso porque o autor define o trabalho histórico como “uma estrutura
verbal, na forma de discurso narrativo em prosa, que pretende ser um modelo, ou
ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram
representando-o”. (p. 18). Portanto, busca identificar e analisar nas obras dos
historiadores do século XIX, os componentes estruturais das narrativas e suas
estratégias narrativas levadas a cabo.
[2] REZENDE,
Antonio Paulo. Apresentação. In: BARROS, Natália; REZENDE, Antonio Paulo;
SILVA, Jaílson Pereira (Org.). Os anos
1920: Histórias de um tempo. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p.
12.
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