A gravidez e o funeral
Folhetim de Gabriel Arcanjo
A
sentinela de Joaquim foi um acontecimento marcante, lá compareceram em peso os
representantes de todas as classes e pessoas da cidade, desde os seus parentes
e amigos mais ilustres aos mais humildes e paupérrimos cabras e caboclos da
povoação. A família Martins distribuiu cachaça, café e aluá aos presentes. O
padre Meireles encomendou a alma do defunto aos anjos de Deus, e após pouco
mais de meia hora estava feito o ritual de velório. “-Que descanse em paz. Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” e a multidão contrita respondeu
“-Amem!”
Maria fora proibida pela família do
defunto de comparecer ao velório de seu amante. “-Onde já se viu”, disse a mãe
de Joaquim, “uma rameira como aquela! Pois ela que não se atreva a botar a cara
por aqui, que a gente manda dá uma surra de cipó de urtiga naquela égua!” “-Dizem
que tá amojada, e que o menino é nosso neto, mulher!”, disse o velho coronel,
senhor de terras e empreendedor falido do mercado. No que a velha responde: “-E
quem é que garante que o fie é dele? Uma puta que já foi de outro home! Pois
ela que se atreva a aparecer por aqui, que vai ver o que é bom pra tosse!”
A lua estava alta no céu. Era
meia-noite. De dentro das torceras de cana da fábrica de cachaça e rapadura do
coronel Marinho, entre o Quadro da Igrejinha e a Rua da Goela, Maria pôde
acompanhar de longe o funeral de seu amado. As pessoas riam, conversavam nas calçadas,
e o vento passou, sorrateiro e frio congelando o sangue e a alma dos
supersticiosos que ali estavam. Seria Joaquim, de dentro da noite, a murmurar
para sua amante que ele morrera infeliz? Maria ouvia no vento a voz de Joaquim:
“-O que será de nossa criança, Maria? O que será de seu futuro? Se for mulher
será uma renegada, como você? E se for menino, teria melhor sorte? Tornar-se-á um
alcoólatra, um boia-fria ou um João-ninguém qualquer a gastar a vida no cabo da
enxada?! “-Vou tomar um abortivo”, disse Maria, “-pra que nossa criança nasça
morta, Joaquim! É melhor nascer morta do que vir pra essa vida fudida!”
E o vento passou por ela, arrastando a
terra e o pó, adentrando as alcovas, assustando os homens e as mulheres no
velório – era a alma do finado?-, como a lhe pedir perdão?: “- Perdão Maria!” De
dentro da carcaça sem vida estendida no caixão, Joaquim, se pudesse falar, provavelmente
diria a seus pais para protegerem seu filho no ventre da jovem; mas Maria vai
tomar um abortivo, pois é melhor nascer morto do que vir para esse mundo fudido!
Já é meia-noite, e a lua está alta no
céu. Maria vai tomar um abortivo! O vento é um presságio. O que fazer? A quem
recorrer? Como alimentar a si mesma e a uma criança sem trabalho, sem renda,
sem dignidade numa cidade impiedosa, como esta? Como silenciar a dor da morte
do amado? A cada dia a barriga crescia um pouco mais, e os parentes da criança em
nada queriam ajudá-la. “É filho de uma puta, quem é que sabe quem é o pai?”,
dizia a avó. Maria sabia. Sabia perfeitamente: era Joaquim Martins, comerciante
do mercado, fazendeiro falido, pai de dois filhos, marido de outra mulher, pois
ela não conhecera outro homem além dele e do desgraçado que a violentou no
sítio de seu pai adotivo, no bairro da Lagoa, meses atrás.
Uma chuva fina caia do céu, lavando
a cidade, e espalhando um odor de inverno e de tristeza. A chuva parecia um
choro. Era um choro de um milhão de anjos? Ou uma prova cabal da indiferença de
Deus, diante da dor e do sofrimento do mundo? As lágrimas da chuva se
misturavam às lágrimas dos homens e mulheres no funeral. Maria não sabia como
seria o seu amanhã (não possuía um só tostão no bolso que lhe bastasse para
comprar uma xícara de café ao raiar do dia). Mas sabia perfeitamente que seu
filho (que também era filho do defunto ali estirado) não teria futuro e que era
melhor nascer morto do que vir pra esta vida fudida! E o sono e o cansaço lhe
encontraram debaixo do alpendre da casa de farinha abandonada do coronel
Marinho. Ela transcendeu tempo e espaço. Adormeceu ao relento. De repente viu a
si mesma, numa ciranda de roda, ao lado de seus irmãos e irmãs ricos do Ipu
(era a família Araújo, fausta e feliz). Viu uma mesa farta, com pães, carne e
ovos sendo servido por criados vestindo roupas humildes. Viu seu pai na
cabeceira da mesa se servindo de um prato suculento, e ao fundo da sala, viu
sua mãe, Julia Alves, arrumando a
cabeleira esvoaçante com um pente de osso de tartaruga. Mas aquela não era a
mãe que Maria conhecia. Em seu sonho Julia era uma megera terrível, possuía uma
língua disforme, como a língua grossa e roxa de um enforcado, e os seus olhos
eram amarelos e malignos, como os olhos de uma gata raivosa no cio. E de sua
garganta hedionda saia um som gutural, como se viesse das profundezas do inferno.
No sonho viu Joaquim, seu amante, assentado
ao lado de seu pai, José Alves, de sua mãe Júlia, de seus irmãos e do solteirão
Antonio, seu pai adotivo. Todos se banqueteavam calmamente numa mesa de jantar
posta à sombra de uma grande mangueira frondosa, que estava assentada sobre um
tripé de pedras onde uma grande panela de ferro pendia numa corrente longa e
suja. E era dela que vinha a comida que era servida aos comensais. Todos comiam
e bebiam tranquilamente um prato e os licores servidos pelas mãos da mãe monstruosa.
Maria viu a si mesma menina, sendo chamada pela mãe para assentar-se à mesa com
o resto da família. Trouxeram-lhe o prato principal, “-Coma, minha filhinha,
coma!”, disse-lhe sua mãe. Maria, com uma colher de madeira, mexeu no caldo que
estava na superfície da panela de ferro, para saborear as porções do fundo. Ao movimento
da colher, a pasta que estava submersa veio à superfície: era a face horrorosa
de uma criança natimorta cosida e servida aos comensais do banquete por sua mãe
monstruosa. Julia Alves, a besta-fera do abismo, disse-lhe com sua voz gutural
e terrivelmente sádica (voz saída do abismo!): “-Coma, minha filhinha, coma!” e
rio um riso frouxo e amedrontador (era o cadáver do bebê, que ela, Maria, carregava
no ventre que estava sendo servido na mesa? Ou era ela mesma, abandonada pela
mãe cretina ao nascer? Ela não sabia).
A voz de sua mãe ecoava em sua
imaginação: “-Coma, minha filhinha, coma”, e se transformava na gargalhada
hedionda de um gárgula:
“Há-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra!!!!”. Os sonhos são coisas
sem nexo, mas não deixam de ter um filete de realidade; uma luz perdida de
razão em meio ao deserto louco e nebuloso do inconsciente cru, sem barreiras
morais ou eufemismos éticos. Um limbo onde a consciência humana vem prestar
contas com o inconsciente, segundo Freud. A voz terrível de sua mãe repetia a
mesma sentença “-Coma, minha filhinha, coma”, e ela sabia que era uma voz saída
do abismo. Ou era aquele sonho um presságio do fim - o fim do mundo estava
próximo, ela tinha certeza disso - era a lembrança da vida fudida, do cadáver de Joaquim, ou do vento e da chuva lá fora?). E
a noite caia mais tenebrosa e impenetrável do que antes, como se fosse uma
neblina espessa, negra quase palpável ao tato dos homens e das mulheres da
sentinela de Joaquim, que lembravam ratos num labirinto. Era uma noite esparsa,
pavorosa, de dores, de gemidos, de almas penadas, de trovoadas e de tristezas
mil.
Continua...
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