Hoje apresentamos uma resenha de duas obras fundamentais para se entender
a formação negra do Brasil e o pensamento do médico maranhense Nina Rodrigues,
que publicou os clássicos O animinismo
fetichista dos negros baianos e Os
Africanos no Brasil. Caso o leitor
tenha curiosidade de saber mais, deixo abaixo o link de um artigo escrito por mim, sobre o pensamento de Nina
Rodrigues, e publicado recentemente.
Parece
unânime entre os estudiosos defender que, se Nina Rodrigues não foi o primeiro
no Brasil a estudar o negro, foi pelo menos aquele que com profundidade o
elegeu como objeto de ciência. De fato, a questão central dos trabalhos deste
médico dizia respeito em analisar a influência da “cultura” e da psicologia
negras na formação da nacionalidade brasileira. O negro no Brasil é, assim, o
elemento ou objeto central da maioria de seus trabalhos, como fez no O animismo fetichista e no livro Os
Africanos no Brasil. Este último é
para muitos estudiosos uma das obras principais do autor, pela profundidade de
sua análise e pela descrição que faz da cultura dos negros africanos trazidos
para o Brasil.
O livro, O Animismo
Fetichista dos Negros Baianos reúne cinco artigos do autor, publicados
originalmente na Revista Brazileira entre 1896 e 1897, os quatro
primeiros sob o mesmo título e um quinto chamado Ilusões da catequese no
Brasil que, juntos, foram publicados mais tarde, em 1900, na forma de
livro, em francês, com o título L'animisme
fetichiste des nègres de Bahia. Em 1935, Arthur Ramos, discípulo de Nina
Rodrigues, reuniu os artigos publicados na Revista
Brazileira e publicou-os em livro,
atualizando a grafia. A obra foi reeditada nas comemorações do centenário da
morte do Médico da Faculdade de Medicina da Bahia.
A obra de Nina Rodrigues, O Animismo Fetichista, é resultado do
esforço do autor para empreender um estudo descritivo das práticas religiosas
dos negros baianos no final do século XIX. Mas, não pode se resumir a isso.
Médico, agindo como etnólogo, e convicto de que seu método científico era o
mais adequado para analisar e descrever as práticas religiosas dos negros
baianos, adotou uma postura de observador, indo pessoalmente aos cultos,
assistindo-os e anotando em seu diário as observações feitas. Ajudado por
informantes, ele compôs um quadro vivo das práticas cotidianas dos cultos
religiosos dos negros. Mas, embora sempre esteja defendendo a sua pretensa
neutralidade científica e, da mesma forma, descreva os cultos, documentando-os
para a posteridade, sempre adota uma postura analítica. No O Animismo, por exemplo, tenta explicar a possessão como um caso sui generis
de histeria dos negros e dos povos mestiços como uma sobrevivência hereditária
do atraso da evolução de sua raça, ainda que não conclua seguramente. Aqui, a
postura do etnólogo se transforma na postura do médico, que tenta explicar o
“sobrenatural”, como uma “doença” perfeitamente explicável e compreensiva.
Desta forma, o relato de Nina Rodrigues pretensamente científico, “neutro”,
“objetivo” e que busca a “verdade”, não é, absolutamente, inocente, como um
leitor desavisado poderia imaginar.
No
O Animismo
Fetichista, mas isso ocorre em toda a sua obra, embora adote uma postura
que nos pareça muitas vezes valorizar as tradições, costumes e cultos
religiosos dos negros e mestiços, chegando mesmo em alguns casos a defender a
liberdade dos cultos “africanos” contra os ataques da imprensa baiana, Nina
Rodrigues está sempre buscando comprovar a sua tese de que os povos mestiços
seriam mais propensos ao desequilíbrio e, portanto, fadados às degenerações.
Pela miscigenação evidente, finalmente, a nação estaria condenada ao fracasso.
Neste último caso, também parece haver contradições, pois em alguns momentos
fica a impressão de que, dependendo das nações negras que aqui aportaram, se
mais ou menos evoluídas, seria possível ao país, ainda que de forma mais lenta,
atingir a civilização, como faz no livro Os
africanos do Brasil. Esse pensamento advém da ideia de que mesmo entre as
“raças inferiores” há graus de evolução desiguais.
O
pensamento de Nina Rodrigues não é fácil de ser apreendido em função de seus
paradoxos e contradições que só uma leitura atenta de seus trabalhos pode
revelar. De um lado, não se pode negar que ele aceitou os dogmas e as teses do
darwinismo social e da antropologia criminal, por outro lado, adotou-as em
relação à realidade brasileira fazendo muitas vezes uma releitura das teses
raciais chegando mesmo, em alguns casos, a contestá-las com base em uma
pesquisa empírica (pesquisa científica).
Sem
dúvida, a grande questão de Nina Rodrigues no O Animismo Fetichista e em muitas obras escritas por ele, é o
negro, isto é, o seu grande problema é saber qual foi a influência ou
contribuição social exercida pelas raças negras no Brasil, tendo em mente a
formação de nossa nacionalidade. O que estava em jogo era, também, avaliar o destino
do país com base em sua formação racial. O país estava em vias de formação e
não constituía uma nação acabada. Era necessário, pois, avaliar o valor de seu
povo e se possível intervir na realidade para ajudá-lo em sua caminhada. Esse
era o papel do médico Nina Rodrigues. Como etnólogo cabia a análise, o que faz
muito bem em seus trabalhos.
Ao
contrário de O animismo, a obra Os
africanos do Brasil está dividida em nove capítulos e uma introdução. Reúne
artigos do autor publicados em importantes periódicos da época, entre os anos
finais do século XIX e os primeiros anos do século XX, com trabalhos até então
inéditos. A meu ver, embora em toda a obra uma das preocupações centrais do
autor seja descrever e analisar a procedência dos negros africanos para o
Brasil com o tráfico negreiro, podemos dividi-la em duas partes: nos quatro
primeiros capítulos a preocupação central é analisar a procedência dos negros
africanos trazidos para o Brasil durante os três séculos da escravidão; nos
cinco capítulos seguintes, embora esta preocupação não tenha sido deixada de
lado, a questão principal centra-se sobre a análise das sobrevivências
africanas na “cultura” brasileira e, sobretudo, baiana.
Em
toda a obra, isto é, nas “duas partes”, o fio condutor da análise é saber, partindo
da procedência dos negros africanos e das sobrevivências de sua cultura na
sociedade brasileira, o grau de contribuição dos povos negros para a formação
da nacionalidade brasileira. Saber, por exemplo, sobre a procedência africana
dos negros é importante no sentido de que, dependendo do “grau de evolução” de
“sua civilização” na África, a sua contribuição à sociedade brasileira é
positiva ou negativa. Quanto “mais inferior” culturalmente é um povo africano
trazido para o Brasil, maiores serão as dificuldades de nossa nação “evoluir”
segundo o padrão europeu, uma vez que, entre os negros africanos, o médico estabelece
um grau de hierarquia em sua “evolução biológica e cultural”, não negando a
alguns povos africanos a possibilidade de atingir a civilização, embora de
forma mais lenta que o “homem branco”, o que é surpreendente, tendo em vista o
seu referencial teórico biologizante, considerando que as “raças” estão em
estágios de evolução desiguais e que os negros são inferiores em relação ao
europeu.
Nina
Rodrigues, indiscutivelmente, foi aquele que na virada do século XIX para o
século XX elegeu como objeto de investigação o negro brasileiro. Colocar o
problema do negro como central para analisar a formação da nacionalidade
brasileira eis o seu projeto de ciência. Os Livros O Animismo fetichista e Os Africanos do Brasil não fogem ao
projeto. Nestas obras, mais ainda no Os
africanos do Brasil, empreende um esforço etnográfico para compor um amplo
quadro de informações e dados a respeito das contribuições culturais das
comunidades negras para o Brasil.
Não
podemos deixar de lado, ao analisar a sua obra, e não só os livros em questão,
o contexto e as condições históricas e sociais de sua produção. Ninguém
contesta que o médico maranhense, embora tenha produzido um pensamento original
sobre a formação da nacionalidade brasileira e a influência do negro em sua
constituição, foi fortemente influenciado pelas teorias de base racial vigentes
em seu tempo. Formado em um ambiente institucional, num momento em que as
teorias racistas penetravam com força no Brasil, Nina Rodrigues foi fortemente
influenciado por elas. Foram seus mestres, Comte, Darwin , Cesari Lombroso,
Enrico Feri e outros. Cabe, no entanto, não exagerar. O Médico da faculdade da
Bahia, assim como muitos intelectuais do período, não adotou as ideias de seus
mestres de forma mecânica. Pelo contrário, produziu um pensamento original que,
embora aceite as ideias de desigualdade na evolução das “raças” humanas,
apresentava soluções para os “povos” ditos atrasados, como defende Lilian
Moritz (1993).
Por
outro lado, de fato, Nina Rodrigues produz um discurso sobre o negro brasileiro
pautado pelo paradigma da determinação biológica na evolução das raças,
aceitado a ideia da existência de raças e graus de evolução e desigualdades
dentro de uma mesma “raça”, defendendo assim, no entanto, que há estágios de
evolução em que um povo ou mesmo uma nação pode atingir a civilização mais
rapidamente do que outro, não sendo possível, no entanto, medir isso.
A todo o momento esclarece que o seu discurso é “científico”,
portanto, “objetivo”, e “neutro”. Esse é o paradigma de ciência positiva da
época, cujo modelo é dada pelo método das ciências naturais. Adaptado às
ciências humanas, considerava possível a produção da verdade com base em provas
documentais “objetivas” e isentas de subjetividades. No entanto, todo o seu
discurso está pautado por contradições quase insolúveis. Embora defenda que seu
pensamento é neutro, sempre está “provando”, em seus estudos, a “inferioridade”
da raça negra e implicitamente mostrando que, da nossa formação e colonização
africana advém o nosso atraso como nação. Atraso que não significa uma
condenação, pois podemos, a seus olhos, avançar na senda do progresso que,
dependendo das raças negras aqui introduzidas com o tráfico negreiro, o
progresso e a civilização seriam atingidas em graus diferentes. Tal é o objeto
de Os Africanos no Brasil: descobrir que raças africanas aportaram aqui
e qual o grau de contribuição cultural que nos legaram.
Outra contradição do autor diz respeito ao fato de dar voz aos
negros no Brasil e defender que eles têm de se manifestar e manter seus cultos
e tradições ao mesmo tempo em que os considerava, como já ressaltamos,
inferiores, produto de sua “raça”. Portanto, Nina Rodrigues filtra o seu objeto
de estudo, tendo como lente o seu referencial de base racial, advindo da biologia.
Na sua narrativa, muitas vezes, pela técnica linguística utilizada e pela forma
de narrar, leva-nos a acreditar que ele está valorizando a contribuição do
negro africano na formação de nossa nacionalidade, mas, por outro lado, sempre
conclui mostrando a inferioridade desta contribuição.
Tal é sua análise sobre os cultos religiosos dos negros e mestiços
ao defender que o africano, com o seu fetichismo, é incapaz de assimilar a
abstração da religião católica, ocorrendo, pelo menos na Bahia, que o catolicismo
receba influência dos cultos de raiz africana. Quando se refere à língua do
negro, também, a intenção, parece ser demonstrar a simplicidade de sua
estrutura e, por último, quando aborda a arte dos africanos demonstra que,
embora revele o grau de civilização ou evolução de alguns povos, ela é
“primitiva” e está em um estágio atrasado em relação à arte de outros povos.
Link: texto completo: http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/article/view/98
Link: texto completo: http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/article/view/98
Pilandra
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