Folhetim de Gabriel Arcanjo
A justiça dos costumes
Quando soube do acontecido, Antonio Soares
correu à fazenda de seu parente e compadre, o afamado coronel Manoel Marinho,
localizada na extremidade oeste da cidade, bem na ladeira que fora soerguida
sobre a ancestral trilha indígena de tempos imemoriais, que permitia ao
viajante vencer a Ibiapaba sem dar a volta por Crateús. A fazenda, um sobrado
de dois pisos, com paredes de tijolo cru medindo quase um metro de largura cada
era uma verdadeira fortaleza, guardada por uma dúzia de assassinos afamados, e
alimentada pelo trabalho estafante de uma centena de trabalhadores infelizes. Lá
chegando o aperreado Antonio encontrou nu da cintura para cima, com chapéu de
palha, revolver na cinta e mascando fumo pelo canto da boca, o afamado e rude
coronel Marinho. Sua fama o precede: semi-analfabeto, bronco, avesso a sapatos
e a camisas, o coronel passaria facilmente por um de seus agregados
miseráveis. Ninguém lhe daria a riqueza em
terras em dinheiro que ele de fato tem. Após ouvir a história de seu compadre,
não demorou nem uma hora e o coronel havia reunido os seus cabras, homens como Juriti,
Imburana e Sete Mortes, assassinos afamados, acostumados a espancar e a matar a
mando de seu patrão “justiceiro”.
Em pouco tempo, cada um
desses três homens arregimentou uma patrulha de quatro a cinco rapazes, filhos
e genros de agregados, e partiram para rumos diferentes, a busca de pistas que
pudessem levar à captura do estuprador Joaquim Catunda. “– Tragam ele vivo,
pois eu quero ensinar praquele cachorro como é que homem faz!”, disse o coronel,
ao mesmo tempo em que entregava facas, espingardas e revolveres a seus
sequazes. “– dou cinco contos de réis ao homem que o capturar com vida!”
Montando-se quase todos
em possantes cavalos mansos, os três bandos partiram, o primeiro grupo, que
estava a pé, tomou o rumo da serra, pela estrada de rodagem empoeirada que
ligava o Ipu ao Campo Grande (nenhum cavalo conseguiria fazer a travessia das
ladeiras abissais que se apresentavam a sede do Ipu de povoados como o São João).
O segundo grupo seguiu para Ipueiras, precisamente para São Gonçalo da Serra
dos Cocos. E o terceiro partiu para as bandas da Varjora. Levavam todos eles
bilhetes escritos pelo coronel, orientando seus parentes e compadres na vasta
região que se estendia de Ipu a Santa Quitéria, de Santa Quitéria a Campo
Grande, de Campo Grande a Sobral, de Sobral ao Tamboril, e do Tamboril ao
Piauí:
-Meu compadre,
Escrevo-lhe para pedir sua
ajuda na captura de um cabra safado, que violou moça donzela. Peço que deem guarida e assistência a meus homens,
que são gente disposta a matar e a morrer em meu nome. O dito cujo que procuro
é Joaquim Catunda, caboclo metido a besta, 20 anos, de estatura mediana, que
gosta de beber cachaça e de descabaçar filhas alheias. Assina o Coronel Antonio
Manoel Marinho de Sousa, cidade do Ipu, 25 de setembro de 1936.
Joaquim
fora identificado já cruzando as terras próximas à Matriz de São Gonçalo.
Cabra, alto, magro e com uma cicatriz em forma de lua na face esquerda, ele não
tivera tempo de adentrar os matagais do Piauí e desaparecer, ou de buscar a
proteção de algum coronel inimigo dos Marinhos, ou dos Araújo do Ipu. Capturado
pelos cabras do coronel Pedro Mourão, da Matriz, fora amarrado ao alpendre da
fazenda, comendo sobras e bebendo pouquíssima água, como um porco, até que a
tropa de cabras vindos do Ipu pudessem aparecer para escoltá-lo. Faminto e de
mãos atadas, Catunda mal pôde ver, em meio à poeira vermelha da estrada, quando
a tropa de cinco homens apareceu para levá-lo. À frente estava o temido
assassino conhecido pelo apelido de Sete Mortes. Dizem as más línguas que Sete
Mortes, na realidade, já tinha para mais de 20 mortes nas costas, mas o nome
pegou, e não deixaram de assim chama-lo. Passou a chamar-se assim por causa de
gente que ele eliminou nas mesas de baralho, nos cabarés e nas encruzilhadas
dos sertões, ganhando dinheiro para isso, ou pelo puro prazer de matar “um cabra
safado”. Dizia que preferia matar na faca, “-Não tem nada melhor do que enfiar
uma faca-peixeira nas tripas de um safado e vê-lo dar o ultimo suspiro!”,
dizia. Além da briga de facas, ele era um perito na emboscada. Atocalhando nas
moitas dos caminhos escuros, ninguém poderia escapar de sua mira traiçoeira.
Era capaz de ficar escondido por dias, sem se mexer, sem dormir, sem comer e
sem beber, como uma cobra pronto para dar o bote, só para alvejar um de seus
desafetos. Ele teria matado sete em emboscada. Vem daí o apelido tenebroso.
Sete Mortes gostou quando passaram a lhe chamar assim, depois que ele dera cabo
do sétimo infeliz de uma mesma família, no caminho que dava para a fazenda Boa
Vista, na povoação de Curupaití (hoje Abílio Martins). Sete Mortes fora
contratado pelo Coronel Manoel Martins, da Boa Vista, para dar cabo de atrevida
família de homens destemidos, que insistiam em reivindicar para si a posse das
terras da fazenda Vaca Brava, que o coronel dizia ser de sua gente.
Na realidade, o coronel
e os rivais eram parentes, daí se depreende que todos teriam um pouco de razão,
pois na época as questões de terra não eram decididas nos tribunais, mas nas
emboscadas e nos desafios. Sete Mortes – ou Luiz Miranda da Silva – galgou a
fama e o estrelato após eliminar três irmãos em emboscada, dois na peixeira, e
um numa briga de cacetes: “- Que Luiz Miranda que nada! Eu me chamo é Sete
Mortes!”, dizia nos botecos do mercado do Ipu, por ocasião das novenas do
padroeiro, São Sebastião.
Dizem que certa vez matou
de uma só vez dois policiais que vieram lhe dar “busca de arma” numa festa no
Caratiú. Por isso, fora obrigado a buscar o abrigo das terras do Coronel
Marinho, seu protetor desde então. Impiedoso, certa feita, amarrou um infeliz
pelos tornozelos num pé de juá, e lhe aplicou tão pesada surra que lhe tirou o
couro das costas. Depois, Sete mortes o sangrou na goela, como se faz com os
bodes no sertão. Enfim, Catunda sabia que com este assassino não adiantaria
implorar por misericórdia ou piedade: sete Mortes era o Cão em forma de homem! Mas
não deixou de tentar: “- Pelo amor de Deus, seu Sete Mortes, o senhor tenha
piedade! Eu num queria fazer mal a moça não, ela é que me seduziu! – Cala a tua
boca, seu felá-da-puta”, disse o capanga, apontando o revolver para o
prisioneiro. “-Tu me custou cinco contos de Réis, cabra safado! Disse isso
enquanto seus homens amarravam as mãos do estuprador em comprida corda atada à
sela do cavalo. “-Te prepara pra morrer, disgraçado!” Foi ai que os cabras
viram os policiais, que estavam ali perto, deitados em redes, na sala da casa:
“- Não senhor, vamo intregá ele pro delegado do Ipu! É ordem do governador do
Estado! Não se podi mais matar preso no Ciará assim, feito criação!” disse um
dos policiais.
Continua...
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