Rixa de morte no cabaré
Folhetim de Gabriel Arcanjo
E mesmo os mais brutos dos
homens da cidade (aqueles acostumados à dor e ao sofrimento do mundo) sentiram
um nó na garganta e tiveram vontade de chorar ao perceber a profundidade da
canção triste cantada na praça pelo poeta errante; era uma canção triste como a
vida, sem sentido, regada à cachaça, inútil, e estéril, como os sertões
ressequidos dos Inhamuns:
“-Tanta
gente vai
Tanta
gente vemmmmm
A
bordo do tremmm
A
mercê da vida!
Ôôô,
menina linda
A
luz não finda
Este
torpor!”
Lá longe, bem longe, a montanha
assistia impassível e indiferente à dor e ao sofrimento dos homens e das
mulheres do vale a seus pés; também viu que muitos dentre estes homens se
comoveram pelo canto triste do poeta errante – seria um réquiem para os mortos
de véspera? – ao ponto de depositarem parcas moedas no chapéu empoeirado do
cantor penitente (seria um óbolo ao barqueiro? De certo que não) e partirem também
sorrateiros e indiferentes à dor e ao tormento do mundo..., do vate que cantava
como um choro..., do trem que apitava como um grito, da montanha que espiava
como uma esfinge, e das ruas tortas da cidade triste, que chorava em silêncio
um choro surdo e mudo de mais de um século de existência!
Em meio à multidão
alvoroçada, um homem alto e magro, vestindo terno e gravata escuros, na faixa
dos cinquenta anos, parecia especialmente atento à canção do vate. Seu nome?
Era Augusto Passos, um maçom conhecido e reconhecido como tal, inimigo assumido
do padre Meireles. Augusto era um homem de fibra, fora nomeado promotor púbico
no Ipu, sem ser formado em Direito, pois estivera sempre do lado certo na
política local e estadual. Amigo do velho coronel João Martins da Jaçanã,
encarregou-se pessoalmente da defesa do mesmo, por ocasião de sua prisão e
posterior julgamento no fórum, quando o velho matou a facadas um sobrinho numa
questão de terras. Saindo da feira, o advogado-prático ainda podia ouvir a
canção triste do poeta errante quando avistou por entre as mesas do cabaré a
figura esbelta de seu sobrinho, o jovem Joaquim Martins, e sua bela companheira,
Maria Alves. Muitos casais dançavam, e o sanfoneiro cantava:
No
Ceará não tem disso não,
Não tem disso não, não tem disso não
No Ceará não tem disso não,
Não tem disso não, não tem disso não!
Não tem disso não, não tem disso não
No Ceará não tem disso não,
Não tem disso não, não tem disso não!
Damião, o sanfoneiro que
tocava e cantava o último sucesso de Luiz Gonzaga e que saíra no rádio, fazia
dupla com sem irmão gêmeo, Cosme. Os dois faziam sucesso nas festas de santo e
nos cabarés profanos de todo o sertão e pela Ibiapaba. Vez ou outra os irmãos
se revezavam no fole da sanfona, no trago de cachaça e na cama com as putas. E
puta nova, pouco rodada, era coisa que não faltava para os irmãos. Ninguém
sabia quem era quem, pois os dois tinham os mesmos hábitos, os mesmos olhos
tristes e até os mesmos gostos: forró-pé-de serra, cachaça serrana e “mulher de
vida fácil”.
A jovem loira, de
vestido esvoaçante, que acompanhava Joaquim Martins na dança chamou à atenção
do velho maçom logo ao primeiro golpe do olhar: tratava-se de Maria Alves, a
famosa filha renegada dos Araújo. Linda, loira e atrevida, a jovem se deu ao
desfrute, dançando uma dança escandalosa, que exibia as pernas, as coxas e o
decote de seu vestido de chita feito para as festas profanas e religiosas da
cidade. Nunca houve no Ipu mulher mais formosa, mais desejada, talvez porque
suas vestes generosas deixavam ver as curvas de seu corpo sensual.
Seus olhos eram como o mar;
um mar de fogo e de gelo, de luz e de trevas. Olhos que fitavam o mundo como
quem vive e como quem morre. Olhos que feriam como faca; que perfuravam o peito
como punhal assassino; que amargavam na boca como fel, como limão galego, como
pimenta malagueta. E ao mesmo tempo eram um Oasis, uma sombra com água fresca
sob o sol escaldante do sertão. Maria vivia agora amancebada com Joaquim
Martins. Mas Joaquim era homem casado, mesmo assim montou casa para a amante,
sem se importar com os dissabores da esposa, ou com as fofoqueiras da cidade: “-
Que vergonha! Homem casado, se dar ao desfrute, com essa desavergonhada!” “-Se
pelo menos o sortudo do Joaquim pudesse garantir a exclusividade dos favores sexuais
da moça estaria livre da sífilis e dos chifres!”
Metido a valentão,
Joaquim Martins trouxe a rapariga para exibi-la no forró, para que todos a vissem.
O cabaré estava cheio! Muitos homens bebiam cerveja, aluá ou cachaça, e a
sanfona cantava “-No Ceará não tem disso não! Não, não, não! No Ceará não tem
disso não!”. Maria e Joaquim dançavam agarradinhos como arapuá em cabelo duro, quando
ele – valentão afamado - percebeu os olhares maldosos e atrevidos de um cabra safado
para sua bela mulher. Sem titubear, Joaquim deu um soco de mão aberta no tronco
da orelha do atrevido: “-Toma isso, ô fela-da-puta!” O soco fora tão forte que
o homem veio ao chão, com a borboleta do ouvido zunindo que nem cigarra em
noite de luar. Mas o homem já se ergueu com sua faca em punho! Joaquim não
deixou por menos, sacou de seu punhal de cabo de chifre (o cabaré era um ambiente
tão perigoso que nenhum homem se atrevia a ir lá sem estar armado de faca
peixeira ou revolver cheio de balas). A música dizia “-No Ceará não tem disso
não! Não, não, não! No Ceará não tem disso não!” Mas tinha disso sim!
Cosme e Damião, os
sanfoneiros gêmeos, pararam de tocar, a multidão corria par todos os lados, os
dois homens se mediam de facas em punho, como feras assassinas. E mais uma vez foi Joaquim quem atacou
primeiro: “-Eu sou é macho, caboco besta!”, disse isso, desferindo um golpe cego
no ar com seu punhal vingador. “-Tá pensando o que, seu merda? Eu sô Antõe
Macambira, cabra do coronel Olegário, do Tamboril!” Disse o homem, com a faca
em punho e também partindo para cima de Joaquim. As pessoas assistiam de longe,
bem longe, sem nada fazer para acalmar os dois homens que se digladiavam numa
dança feroz. Não há o que fazer numa briga de facas! Quem seria louco o
bastante para entrar no meio? A faca de Joaquim penetrou fundo no ar, rasgando
o vento, quando Antonio Macambira, feito um gato, pulou de lado, desviando-se
do golpe mortal por um milímetro e, num gesto brusco, aproveitando-se de um
escorregão do inimigo, cravou a faca nas costelas de Joaquim. Joaquim até pôde
sentir o aço frio e cortante da faca-peixeira inundar seu pulmão. E, num último
movimento, muito mais de reflexo do que de destreza, pôde ele cravar seu punhal
no peito seminu de Macambira. Os dois cambalearam, como bêbados e caíram ao
chão quase ao mesmo tempo. Estaria Joaquim morto? Maria gritou por ele e partiu
em seu socorro, mas ele não respondeu. Macambira deu seu último suspiro antes
de Joaquim. (Os dois se veriam daqui a pouco no Tribunal de Jesus). A jovem
amparou a cabeça de seu amante em seu colo, e viu que ele tentava lhe dizer
alguma coisa, por entre gemidos de dor e golfadas de sangue, numa língua já
morta: “-Umm, hummm, humm”, mas o som era inaudível, incompreensível. E a morte
lhe acenava do alto, com um sorriso sinistro a lhe arrastar para o além. Suas
mãos tremiam, num espasmo. Antes que a vida lhe deixasse por completo, Maria
ainda tivera tempo de lhe dizer ao ouvido uma última palavra de adeus: “-Joaquim!
Não morra não, Joaquim, meu amor! Não morra não! Eu tô esperando um filho teu!
O que vai ser de mim, Joaquim?” Ele ouviu a notícia, sorriu com os lábios
gélidos, arregalou os olhos, e morreu...
La fora um vento frio trazia na voz sussurrada
de um tocador andarilho do sertão um réquiem para Joaquim:
“Tanta
gente vai
Tanta
gente vemmmmm
A
bordo do tremmm
A
mercê da vida!
Ôôô,
menina linda
A
luz não finda
Este
torpor!
O
meu coração chorou
Por
uma razão qualquer
A
mercê da vida...”
Continua...
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