A rigor, seguindo a reflexão
do historiador e medievalista, Jacques Le Goff[1], a Idade Média não existe.
Esse período que é tradicionalmente compreendido entre a queda do Império
Romano do Ocidente (476) e a Queda ou Tomada de Constantinopla (1453) não passa
de uma construção, um mito, um conjunto de representações, de imagens em
perpétuo movimento. O período medieval tem sido construído e reconstruído com
diferentes objetos e por diferentes grupos.
A segunda questão a ser levantada
diz respeito ao fato de que o termo Idade Média tem uma história que precisa
ser levada em consideração, sob pena de considerar as imagens construídas sobre
ele como verdades atemporais. Nesse sentido, há inicialmente a imagem ou
construção de duas Idades Médias. A primeira é aquela produzida pelos
humanistas do chamado período moderno e carregada de estereótipos e
preconceitos. É aí que nasce a noção de Idade Média como um período
intermediário entre a Antiguidade clássica e a modernidade ou entre dois
movimentos onde a cultura teria se desenvolvido. O período é caracterizado como
aquele marcado por hábitos violentos e pela inexistência de uma produção
cultural, presente ainda no imaginário de nossos alunos.
Buscando
inspiração nos valores humanísticos da cultura greco-romana, os modernos
produziram uma visão negativa da chamada, por eles, Idade Média, como um
período de decadência e de atraso na história da humanidade, como a “idade das
trevas” ou como “uma noite de mil anos”. Segundo o já citado Jacques Le Goff,
quando os humanistas definiram como tempo intermediário o período compreendido
entre eles próprios e a Antiguidade o fizeram tomando como parâmetro ideias
como flagelo e ruína. Desta forma, para eles, o tempo compreendido entre a
antiguidade e a modernidade, ou seja, a Idade
Média, seria de atraso e vazio cultural. A Idade Média teria sido uma interrupção do progresso humano,
inaugurado pelos gregos e romanos e retomados pelos homens do século XVI.
Também para o século XVI os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância
e superstição. Visão reforçada e levada ao extremo pela filosofia iluminista do
século XVIII na França ao estabelecer a razão humana como único guia infalível
para a humanidade em detrimento do caráter religioso presente na Idade Média.
A
segunda noção de Idade Média é construída no XIX com base numa visão romântica
do medievo, cuja versão a transforma numa “idade da luz”. Essa construção
ocorreu frente ao movimento nacionalista, sobretudo francês, que passou a
buscar fatos e personagens medievais cujos valores fossem relevantes para a
identidade nacional, como é o caso de Joana Darc, transformada em heroína. A
Idade Média transforma-se assim numa espécie de infância dos primórdios da
nacionalidade e que atinge sua idade adulta com o Renascimento.
Desta
forma, cada presente construiu a noção de Idade Média segundo os interesses dos
grupos envolvidos nessa produção. Nós historiadores estamos hoje conscientes do
fato de que os homens visitam o passado com as questões do presente e que cada
presente produz uma revisão do passado. O mesmo ocorre com os historiadores.
Seja
entendida do ponto de vista negativo, como “Idade das Trevas”, seja do ponto de
vista positivo, como “Idade da Luz”, ambas as noções têm sido negadas no
sentido de uma apreensão mais abrangente do período medieval. Ao historiador,
por exemplo, é preciso se despir dessas noções cristalizadas e na pesquisa
entender o período com base em sua própria historicidade, o que não se trata de
tentar buscar uma verdade melhor, como se ela existisse, mesmo porque nós
historiadores estamos hoje conscientes de que o nosso discurso, embora partindo
de uma operação metodológica extremamente complexa e apenas apreendida pelo
iniciado, é, em parte, também, uma construção nossa. A noção de ciência
objetiva, cujo modelo era o das ciências naturais, como queria o positivismo ou
a Escola Metódica, já não tem mais espaço. O conceito de cientificidade adotado
hoje pelos historiadores é outro e não descarta que a subjetividade é um componente
da qual não podemos fugir embora façamos esforço para isso.
Continua...
[1] Ver LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008, e, LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2014
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