Por Raimundo Arcanjo
A
opulência que nossa cidade veio a experimentar nas quatro primeiras décadas do
último século ainda se evidencia na imponência da nossa Igreja Matriz, na
elegância dos poucos prédios históricos que ainda não foram demolidos, como a Pharmácia Iracema e a antiga farmácia do
Sr. Chagas Paz. Os prédios, assim como os homens, têm alma e memória; se nos
detivermos diante dos casarões de Oswaldo Araújo, do “Solar dos Soares”, dos
velhos casarões abandonados de ontem e de hoje, e daqueles pertencentes a
famílias tradicionais, ou mesmo na nossa magistral e abandonada estação
ferroviária, podemos mesmo jurar que eles lamentam, como que a pedir “pelo amor
de Deus” que nós, os ipuenses de hoje, não os deixem perecer para sempre no
abismo sem fundo do esquecimento eterno.
Ali,
outrora, residiram “gigantes”, tais a magnificência da arquitetura, a
imponência das sacadas, o gigantismo das portas, a elevação singular dos tetos.
Das suas paredes, parece que podemos mesmo ouvir as vozes de seus antigos
moradores, a bradar para seus criados, num calor de um dia qualquer de um fim
de tarde perdido para todo o sempre no abismo sem fundo do tempo.
Na
argamassa que une os tijolos, feitos com barro cru, podemos notar as marcas dos
dedos de seus construtores, antigos serviçais a depender da benevolência e da
boa vontade de seus patrões. Ao adentrar a residência, velhas fotografias de
senhores sisudos nos observam com olhos vivos e enigmáticos, como velhos
fantasmas de homens mortos e esquecidos há séculos e séculos. Seus olhos estão vivos
a nos desafiar de dentro da noite dos tempos.
As almas
dos homens e mulheres que outrora ali viveram ainda se fazem presentes em suas
casas, como que a nos vigiar os passos, de forma surreal e fantasmagórica,
censurando-nos pela visita sem pedir licença; eles jamais deixaram suas
residências, seus pertences e seus entes queridos; nós, as pessoas de hoje, é
que somos intrusos ali, estranhos a violar a intimidade daqueles recintos
sagrados. Ali, sempre se escuta, à meia-noite, barulhos estranhos de redes
rangendo sozinhas, de panelas e pratos num tilintar de alvoroço, de passos
apressados nos corredores, de carícias e afagos trocados entre assombrações e
almas penadas de antigos amantes já mortos, nas alcovas escuras a pagarem seus
pecados com a penitencia de assombrarem para sempre as pessoas vivas.
Um outro
dia, quando a gata de um vizinho entrou no cio, muitos juraram, à meia-noite,
terem ouvido um choro espectral de alma penada, de Cão do Inferno, de anjo sem
luz, de encruzilhada assombrada. Poucos são os que têm coragem de encarar
aqueles olhos - vivos e ao mesmo tempo mortos – da fotografia centenária, e ali
pernoitarem sem temerem os tormentos daquela visão. Velhos avós há muito tempo
enterrados se erguem vigilantes à noite em seus casarões centenários, num
sussurro enlouquecedor, de sepulturas seculares sendo abertas, para reclamar
uma existência e uma recordação por nós mesmos há muito tempo negligenciadas.
Continua...
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