segunda-feira, 4 de maio de 2020

CRÔNICA PARA A VELHA IPU JÁ MORTA (PARTE I)





Por Raimundo Arcanjo
A opulência que nossa cidade veio a experimentar nas quatro primeiras décadas do último século ainda se evidencia na imponência da nossa Igreja Matriz, na elegância dos poucos prédios históricos que ainda não foram demolidos, como a Pharmácia Iracema e a antiga farmácia do Sr. Chagas Paz. Os prédios, assim como os homens, têm alma e memória; se nos detivermos diante dos casarões de Oswaldo Araújo, do “Solar dos Soares”, dos velhos casarões abandonados de ontem e de hoje, e daqueles pertencentes a famílias tradicionais, ou mesmo na nossa magistral e abandonada estação ferroviária, podemos mesmo jurar que eles lamentam, como que a pedir “pelo amor de Deus” que nós, os ipuenses de hoje, não os deixem perecer para sempre no abismo sem fundo do esquecimento eterno.
Ali, outrora, residiram “gigantes”, tais a magnificência da arquitetura, a imponência das sacadas, o gigantismo das portas, a elevação singular dos tetos. Das suas paredes, parece que podemos mesmo ouvir as vozes de seus antigos moradores, a bradar para seus criados, num calor de um dia qualquer de um fim de tarde perdido para todo o sempre no abismo sem fundo do tempo.
Na argamassa que une os tijolos, feitos com barro cru, podemos notar as marcas dos dedos de seus construtores, antigos serviçais a depender da benevolência e da boa vontade de seus patrões. Ao adentrar a residência, velhas fotografias de senhores sisudos nos observam com olhos vivos e enigmáticos, como velhos fantasmas de homens mortos e esquecidos há séculos e séculos. Seus olhos estão vivos a nos desafiar de dentro da noite dos tempos.
As almas dos homens e mulheres que outrora ali viveram ainda se fazem presentes em suas casas, como que a nos vigiar os passos, de forma surreal e fantasmagórica, censurando-nos pela visita sem pedir licença; eles jamais deixaram suas residências, seus pertences e seus entes queridos; nós, as pessoas de hoje, é que somos intrusos ali, estranhos a violar a intimidade daqueles recintos sagrados. Ali, sempre se escuta, à meia-noite, barulhos estranhos de redes rangendo sozinhas, de panelas e pratos num tilintar de alvoroço, de passos apressados nos corredores, de carícias e afagos trocados entre assombrações e almas penadas de antigos amantes já mortos, nas alcovas escuras a pagarem seus pecados com a penitencia de assombrarem para sempre as pessoas vivas.
Um outro dia, quando a gata de um vizinho entrou no cio, muitos juraram, à meia-noite, terem ouvido um choro espectral de alma penada, de Cão do Inferno, de anjo sem luz, de encruzilhada assombrada. Poucos são os que têm coragem de encarar aqueles olhos - vivos e ao mesmo tempo mortos – da fotografia centenária, e ali pernoitarem sem temerem os tormentos daquela visão. Velhos avós há muito tempo enterrados se erguem vigilantes à noite em seus casarões centenários, num sussurro enlouquecedor, de sepulturas seculares sendo abertas, para reclamar uma existência e uma recordação por nós mesmos há muito tempo negligenciadas.

Continua...


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