terça-feira, 5 de maio de 2020

CRÔNICA PARA A VELHA IPU JÁ MORTA (PARTE II)




Em seus casarões em ruínas, em seus prédios históricos abandonados, em suas ruas antigas e esquecidas, a velha Ipu chora um choro surdo e mudo das cidades mortas, como um cemitério de vivos; quando um uivo de um cão louco faz lembrar as almas penadas que ali residem; num choro fantasmagórico que, sufocado pelo barulho ensurdecedor dos automóveis e motocicletas que correm obstinadamente pelas ruas de hoje, silenciando mesmo o choro dos homens e mulheres que viveram por aquelas ruas, que amaram por aquelas alcovas, que construíram aquelas casas, que sentaram naquelas praças; e que continuam eternamente a sentar e a andar e a amar pela velha cidade morta e sepultada debaixo da cidade viva, pulsante e barulhenta.
A cidade velha, quase que caída para todo o sempre em um esquecimento tão profundo que, para o futuro, ela nunca existiu, deixa mesmo correr um rio de pranto que à noite assombra os namorados, os noctívagos, os ladrões e os vagabundos, como um gemido de uma alma penada e um vento frio que vem do cemitério da cidade e que faz gelar o sangue dos mais valentes e supersticiosos. Esta é a pior das mortes; a morte total e definitiva; uma morte completa e irreversível; a morte de todos os nossos avós; e dos avós de nossos avós.
Todos de uma só vez vêm juntos gritar à meia-noite, em pânico, aos ouvidos insensíveis dos homens e mulheres vivos, como uma legião de anjos e de demônios na eterna agonia da batalha travada entre os santos e os diabos pelas almas dos vivos e dos mortos.
Mas as pessoas de hoje não ouvem, não sentem; não falam; como se estes é que jazessem inertes e sem vida.

Raimundo Arcanjo.


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