Dos muitos fatos chocantes desenrolados durante
esta semana, dois me pareceram mais importantes. Aparentemente sem ligação
nenhuma entre si, me permitem, no entanto, uni-los em mesmo fio de análise.
No primeiro deles, o
presidente da República mantém sua posição intransigente na defesa de
flexibilizar as ações austeras, adotadas pelos governadores, para combater o
avanço da Covid-19, em meio a um cenário devastador. Fato que contribuiu para o
recente pedido de demissão do “novo” Ministro da Saúde.
O segundo caso, aparentemente
inocente, diz respeito à resposta do Ministro da Educação, em entrevista à rede
de televisão CNN Brasil. Perguntado sobre a possibilidade de cancelar ou adiar
o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), marcado para acontecer em novembro, Abraham
Weintraub respondeu que não vê necessidade disso. Na mesma ocasião, indagado
sobre os movimentos que pedem o adiamento da prova, afirmou que o exame “não é
feito para atender injustiças sociais e sim, para selecionar os melhores
candidatos”.
O
que uma coisa tem a ver com a outra? O fio que permite reuni-los numa mesma
análise se revela no renascimento, talvez não consciente, mas não inocente, de
uma política ou prática surgida em meados do século XIX, na Europa, na esteira
do Darwinismo social e que ficou conhecida como Eugênia.
O Darwinismo social partia de
algumas premissas básicas. Em primeiro lugar, de que a humanidade evoluía com
base em raças distintas. Em segundo, que as raças evoluem passando de um
estágio primitivo ou primeiro (selvageria), atravessa uma etapa intermediária (barbárie)
e chega a um estágio superior (civilização), modelo de Lewis Morgan. Em terceiro,
que a raça branca, europeia e cristã era superior às demais e que, portanto,
àquela altura a única a ter atingido o grau superior da civilização. Em quarto,
e último, que qualquer mistura entre as “raças” (miscigenação) era vista como
um erro, na medida em que o resultado do “cruzamento” era sempre um “degenerado”,
incapaz, pois unia os defeitos das raças que lhe tinham gerado.
Foi
na esteira de tais conclusões que nasceu a eugenia, partindo da ideia de que
era possível melhorar a raça por meio da seleção dos melhores (mais evoluídos),
o que significava, em última análise, eliminar os piores (fracos, débeis,
inferiores, degenerados). Hitler ressuscitou tais ideias em um momento em que
elas estavam desacreditadas em todo lugar, e as transformou em política de
Estado. Com sua ideia fixa de criar uma raça superior (arianismo), buscou
eliminar todo elemento considerado, por ele, inferior: judeus, comunistas,
negros, homossexuais, ciganos e muitos outros, e conservar a “raça ariana”, pura, tida como superior.
Quando
o presidente e seu séquito utilizam os argumentos de que é preciso se expor ao
Coranavírus, porque de uma forma ou de outra a maior parte da população será
infectada, e que só irá eliminar idosos e pessoas com doenças pré-existentes, se
aproxima muito da ideia de que a doença seleciona os melhores, afinal,
sempre defendeu, “já iriam morrer logo, mesmo!” (Disse com outras palavras).
Na outra ponta, o Ministro da
Educação defende o Enem como critério para “selecionar melhores”,
desconsiderando o fosso social que existe entre os alunos das escolas públicas e
aqueles da classe média e alta que podem acompanhar tranquilamente as aulas
remotas por meio de dispositivos tecnológicos e de uma ambiente familiar
favorável.
Quando
Weintraub, desconsiderando que mais da metade dos candidatos ao Enem não têm
computador em casa, de que boa parte dos estudantes da rede pública de ensino
não está acompanhando as aulas virtuais, dada a sua condição precária, e
defende a manutenção do exame com o argumento de que ele é um critério para
selecionar os melhores e não de combater as desigualdades sociais, se aproxima
do discurso do presidente.
Neste caso, a questão é mais
sutil. Sobressai uma visão meritocrática, própria de parte da classe média e
alta, que contribui para manter dois ciclos constantes: um de riqueza e outro
de pobreza. É o critério de seleção que substitui o conceito de raça, chave
usada pelos intelectuais brasileiros e estrangeiros do início do século XX para
analisar o país.
O critério da meritocracia é cultural
e parte da ideia de que os que vencem são mais bem preparados por méritos próprios,
escondendo as condições econômicas e sociais que lhes garantem o pódio. O critério
cultural cumpre o mesmo papel que, no passado, o conceito de raça cumpriu. Quem
“vence” acredita sempre ser superior, melhor, como uma espécie de classe de
excelência.
De
um lado, o presidente parece ressuscitar uma prática asquerosa e que condena as minorias
ao fosso, e, de outro lado, é aplaudido por seu ministro, que lhe faz coro.
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