terça-feira, 12 de maio de 2020

O LIVRO NEGRO (PARTE II)




O sentido do Romance
O livro negro, creio, foi um artifício usado pelo autor para discutir pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, a perda de identidade do povo turco, simbolicamente representada pela perda de memória do cronista Celâl. Em segundo lugar, a ocidentalização crescente da Turquia a partir da crise do Império Otomano, simbolicamente representada pela necessidade de Galip de tornar-se outra pessoa.
Na verdade, o romance foi uma forma, creio, que o autor encontrou para discutir a questões que o inquietam. Desta forma, Pamuk é ao mesmo tempo o cronista Celâl, permitindo-o discutir a perda da memória ou das raízes do povo turco, sua vontade de querer ser outra pessoa e não ele mesmo, vivendo entre a perda de suas raízes, a fantasias de ser ocidental, e Galip, cuja  busca é pelas raízes perdidas de seu povo e não por sua esposa. Transformando-se em Galip, esse artifício permite ao autor discutir a ocidentalização da Turquia e a frágil identidade de seu povo, que oscila entre duas culturas: a cultura oriental, em decadência, e a cultura ocidental, em ascensão, marca da Turquia moderna.
As vozes de Celâl e de Galip são as próprias vozes de Orhan Pamuk, que só consegue ser ele mesmo buscando ser outra pessoa. Só encontra a felicidade quando se afasta do muno real e conta/escreve histórias, cria personagens, se utiliza de outras histórias e autores para construir novas histórias, como se a literatura permitisse a ele enveredar por um labirinto complexo em busca de sua saída, tal como se mostra o livro em questão.
Celâl e Galip são o duplo do autor. Ele se utiliza dos personagens para falar de si mesmo, da literatura e para falar da cidade. Como no livro Istambul: memória e cidade, Pamuk fala de uma coisa apenas para chegar a outra coisa. Quando fala de si é para falar da cidade e quando fala da cidade é para falar de si, como se ele não vivesse sem sua memória, que se confunde com a cidade ou como se a cidade não pudesse viver sem ele.
Em “O livro negro”, Pamuk parece brincar com o leitor, construindo sentidos ocultos em sua escrita como que tentando levá-lo a descobrir um significado implícito capaz de antever o desfecho da história. Na verdade, o que está por trás do mistério é o próprio autor. A discussão sobre os manequins permite ao romancista refletir sobre a ocidentalização, momento em que os turcos não queriam mais ser turcos, querendo parecer-se com outras pessoas, contribuindo para que perdessem a sua própria essência ou as letras ocultas em seus rostos, que só poderiam ser lidas pela cultura: seus jeitos de ser. 
Os manequins preservados são o próprio passado relegado para os subterrâneos. São a própria essência perdida dos turcos. Os manequins, finalmente, representam tudo aquilo que os turcos não mais queriam ser: eles mesmos, e, por isso, ninguém mais se interessava por eles. Com os manequins relegados ao esquecimento, a essência de Istambul está em seu subterrâneo e à medida que se aproxima da superfície, que dizer, do ocidente, mais se esquece ou se perde a sua essência. Quanto mais a cidade se ocidentaliza, mais os turcos perdem sua identidade, relegada apenas ao passado e à memória, simbolicamente representadas pelos manequins que guardam os gestos e rosto dos verdadeiros turcos.
Por que a ocidentalização, a vontade de ser outra pessoa, seduzia tanto? Porque ser outra pessoa fazia esquecer a sua essência, esquecer sua própria tristeza, da derrota e inquietações de seu mundo. Fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia. Voltar-se para o ocidente era perder a memória, a melancolia que é a própria essência da cidade, a derrota, a pobreza. Isso é representado pelo episódio em que Galip, em sua busca pelas ruas da cidade, observa as pessoas que saiam de um cinema: “(...) o que se lia em todos aqueles rostos era a serenidade de quem consegue esquecer sua própria tristeza mergulhando totalmente numa história. Todas aquelas pessoas encontravam-se imersas no miolo da história em que se tinham instalado com tanta vontade. O espírito delas, havia muito esgotado pelas derrotas e inquietações, agora tornara a se preencher com uma história complexa, que as fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia”. P. 258
A discussão sobre o olho invisível que nos olha parece representar a própria essência ou a melancolia da Istambul ou dos bairros secundários, que permite aos turcos perceber que eles não conseguem ser eles mesmos. Transitar pelos bairros turcos, para Pamuk, permite a população perceber sua essência perdida ou em transformação. Permite, finalmente, o contraste entre o homem que se ocidentaliza e a cultura oriental, que parece lutar para permanecer a mesma. Quando Celâl, após escrever sua crônica, resolve perambular, como um flaneur pelas ruas da velha Istambul e sente falta de alguma coisa, é a sua própria essência que lhe escapa. É por isso que não consegue ser ele mesmo e nem o outro. Aqui a discussão é existencialista: como ser eu mesmo ou tornar-se outro. Ninguém consegue ser ele mesmo e nem outro, a não ser como literato. É a literatura que permite ao escritor ser ele mesmo e ser outro ao mesmo tempo. Parece ser isso que Pamuk quer nos dizer...
Boa leitura...

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