O sentido do Romance
O livro negro, creio, foi um artifício
usado pelo autor para discutir pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, a perda
de identidade do povo turco, simbolicamente representada pela perda de memória
do cronista Celâl. Em segundo lugar, a ocidentalização crescente da Turquia a
partir da crise do Império Otomano, simbolicamente representada pela
necessidade de Galip de tornar-se outra pessoa.
Na verdade, o romance foi uma forma,
creio, que o autor encontrou para discutir a questões que o inquietam. Desta
forma, Pamuk é ao mesmo tempo o cronista Celâl, permitindo-o discutir a perda
da memória ou das raízes do povo turco, sua vontade de querer ser outra pessoa
e não ele mesmo, vivendo entre a perda de suas raízes, a fantasias de ser
ocidental, e Galip, cuja busca é pelas raízes perdidas de seu povo e não
por sua esposa. Transformando-se em Galip, esse artifício permite ao autor
discutir a ocidentalização da Turquia e a frágil identidade de seu povo, que
oscila entre duas culturas: a cultura oriental, em decadência, e a cultura
ocidental, em ascensão, marca da Turquia moderna.
As vozes de Celâl e de Galip são as
próprias vozes de Orhan Pamuk, que só consegue ser ele mesmo buscando ser outra
pessoa. Só encontra a felicidade quando se afasta do muno real e conta/escreve
histórias, cria personagens, se utiliza de outras histórias e autores para
construir novas histórias, como se a literatura permitisse a ele enveredar por
um labirinto complexo em busca de sua saída, tal como se mostra o livro em
questão.
Celâl e Galip são o duplo do autor. Ele
se utiliza dos personagens para falar de si mesmo, da literatura e para falar
da cidade. Como no livro Istambul: memória e cidade, Pamuk
fala de uma coisa apenas para chegar a outra coisa. Quando fala de si é para
falar da cidade e quando fala da cidade é para falar de si, como se ele não
vivesse sem sua memória, que se confunde com a cidade ou como se a cidade não
pudesse viver sem ele.
Em “O livro negro”, Pamuk parece
brincar com o leitor, construindo sentidos ocultos em sua escrita como que
tentando levá-lo a descobrir um significado implícito capaz de antever o
desfecho da história. Na verdade, o que está por trás do mistério é o próprio
autor. A discussão sobre os manequins permite ao romancista refletir sobre a
ocidentalização, momento em que os turcos não queriam mais ser turcos, querendo
parecer-se com outras pessoas, contribuindo para que perdessem a sua própria
essência ou as letras ocultas em seus rostos, que só poderiam ser lidas pela
cultura: seus jeitos de ser.
Os manequins preservados são o próprio passado relegado para os subterrâneos. São a própria essência perdida dos turcos. Os manequins, finalmente, representam tudo aquilo que os turcos não mais queriam ser: eles mesmos, e, por isso, ninguém mais se interessava por eles. Com os manequins relegados ao esquecimento, a essência de Istambul está em seu subterrâneo e à medida que se aproxima da superfície, que dizer, do ocidente, mais se esquece ou se perde a sua essência. Quanto mais a cidade se ocidentaliza, mais os turcos perdem sua identidade, relegada apenas ao passado e à memória, simbolicamente representadas pelos manequins que guardam os gestos e rosto dos verdadeiros turcos.
Os manequins preservados são o próprio passado relegado para os subterrâneos. São a própria essência perdida dos turcos. Os manequins, finalmente, representam tudo aquilo que os turcos não mais queriam ser: eles mesmos, e, por isso, ninguém mais se interessava por eles. Com os manequins relegados ao esquecimento, a essência de Istambul está em seu subterrâneo e à medida que se aproxima da superfície, que dizer, do ocidente, mais se esquece ou se perde a sua essência. Quanto mais a cidade se ocidentaliza, mais os turcos perdem sua identidade, relegada apenas ao passado e à memória, simbolicamente representadas pelos manequins que guardam os gestos e rosto dos verdadeiros turcos.
Por que a ocidentalização, a vontade de
ser outra pessoa, seduzia tanto? Porque ser outra pessoa fazia esquecer a sua
essência, esquecer sua própria tristeza, da derrota e inquietações de seu
mundo. Fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia. Voltar-se para o
ocidente era perder a memória, a melancolia que é a própria essência da cidade,
a derrota, a pobreza. Isso é representado pelo episódio em que Galip, em sua
busca pelas ruas da cidade, observa as pessoas que saiam de um cinema: “(...) o
que se lia em todos aqueles rostos era a serenidade de quem consegue esquecer
sua própria tristeza mergulhando totalmente numa história. Todas aquelas
pessoas encontravam-se imersas no miolo da história em que se tinham instalado
com tanta vontade. O espírito delas, havia muito esgotado pelas derrotas e
inquietações, agora tornara a se preencher com uma história complexa, que as
fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia”. P. 258
A discussão sobre o olho invisível que
nos olha parece representar a própria essência ou a melancolia da Istambul ou
dos bairros secundários, que permite aos turcos perceber que eles não conseguem
ser eles mesmos. Transitar pelos bairros turcos, para Pamuk, permite a
população perceber sua essência perdida ou em transformação. Permite,
finalmente, o contraste entre o homem que se ocidentaliza e a cultura oriental,
que parece lutar para permanecer a mesma. Quando Celâl, após escrever sua
crônica, resolve perambular, como um flaneur pelas ruas da
velha Istambul e sente falta de alguma coisa, é a sua própria essência que lhe
escapa. É por isso que não consegue ser ele mesmo e nem o outro. Aqui a
discussão é existencialista: como ser eu mesmo ou tornar-se outro. Ninguém
consegue ser ele mesmo e nem outro, a não ser como literato. É a literatura que
permite ao escritor ser ele mesmo e ser outro ao mesmo tempo. Parece ser isso
que Pamuk quer nos dizer...
Boa leitura...
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