domingo, 31 de março de 2013

A Coluna Prestes em Ipu - Parte IV


Lideranças da Coluna nos momentos de sua formação. Fonte: http://prestesaressurgir.blogspot.com.br

Pretendendo apossa-se dos mapas, fundamentais para orientar a marcha dos “revolucionários” em solo nordestino, João Alberto visitou, junto com uma comissão formada no local, o Gabinete de Leitura Ipuense, com sede no Quadro da Igrejinha, ao lado da residência do Padre Gonçalo Lima. Os tais mapas (quatro) existiam e foram recolhidos pela Coluna. Dr. Chagas Pinto, presidente da instituição, ao lado, na mesma mesa, de Pedro Gonçalo, Thomaz Corrêa, João Bessa e outros sócios da instituição, pediu que João Alberto, antes de sair, deixasse suas impressões da cidade no livro destinado a este fim. Emocionado escreveu o seguinte: Cidade hospitaleira, onde tudo lembra a memória do meu querido irmão. Em cada um de seus habitantes encontrei um amigo desinteressado, mas para admirar este formidável torrão, tão querido de seus filhos, tão querido destes cearenses, raça forte que tanto honra nosso Brasil. Sinto uma verdadeira satisfação moral.
Em seguida, diante da comoção, João Alberto conversou com os presentes sobre as andanças e a luta da Coluna Prestes pelo interior do país. Antes de sair, Monsenhor Gonçalo Lima, sacerdote da freguesia, fez um apelo a João Alberto para que este, juntamente com seu bando, deixasse a cidade, pois só assim a população ipuense iria dormir em paz e despreocupada. Pediu que o bando repousasse à noite fora da cidade. O tenente consentiu. Por volta das 6 horas da tarde, o 2º destacamento da Coluna retirou-se da cidade, enquanto o padre Gonçalo rezava missa. Dormiram em suas imediações, acampando no hoje Espraiado, no então sítio Viração, de propriedade do padre Gonçalo de Oliveira Lima. No dia seguinte rumaram para Crateús.
            Os únicos atos violentos desfechado contra a cidade pelo destacamento foram a ocupação da Estação, a posse do telégrafo, a derrubada de postes, trilhos arrancados e a invasão da Cadeia Pública, que ficava próximo ao mercado. Na cadeia, arrebentaram as grades e libertaram os presos que ali estavam, inclusive o sapateiro Anastácio S. da Silva que há alguns meses havia assassinado a golpes de faca um policial nas imediações da Estação. Era um senhor de cerca de sessenta anos e que acompanhou a Coluna até desfazer-se em solo boliviano.
A Marcha prosseguiu rumo a Arneiroz, onde se reuniria, como combinado, com os outros destacamentos da Coluna.
Continua...

sábado, 30 de março de 2013

A Coluna Prestes em Ipu - Parte III


Principais Lideranças da Coluna Prestes. Fonte: http://ijuisuahistoriaesuagente.blogspot.com.br


Esclarecido sobre o quê foi a Coluna Prestes, voltemos à cidade de Ipu, às 5h15 do dia 13 de janeiro de 1926. 
Reinava um silêncio nas imediações da Igrejinha, na praça São Sebastião. Algumas portas do casario começavam a se abrir. Logo que o bando tomou contato com a população, percebeu que a cidade não estava preparada para atacá-los. O que os deixou apreensivos foi aquela bandeira vermelha hasteada no alto da Igrejinha. Pensavam tratar-se de um sinal de que a cidade resistiria a sua chegada, mas logo souberam que a localidade estava festejando o seu padroeiro, São Sebastião, e que aquela bandeira não passava de um símbolo tradicional dedicado ao santo.
Só então o bando seguiu em direção ao Mercado Público. Neste, um daqueles que compunham o grupo, talvez o seu líder, se dirigiu a uma bodega onde uns “cabras bebiam” e perguntou a um deles onde ficava a Estação Ferroviária, no que respondeu apontando o dedo em direção à atual rua Cel. Felix Martins.
Rumaram então para a Estação Ferroviária, destino buscado na cidade. Apossaram-se do telégrafo e enviaram avisos à Camocim, Sobral e Fortaleza, dizendo que forças pomposas desceriam a Serra de Ibiapaba, atacariam Sobral e Camocim e rumariam para Fortaleza. O pânico alastrou-se entre as populações destas localidades.
Em seguida, o destacamento se apossou da locomotiva estacionada no local, derrubou postes e arrancou trilhos, cortando assim, a comunicação com outras localidades com o objetivo de impedir a vinda de forças legalistas pela via férrea.
Ali, ao lado da Estação, o bando acampou. A Estação passou a ser o quartel general do 2º destacamento da Coluna Prestes. Os homens precisavam descansar, pois haviam percorrido um longo percurso desde Teresina, no Piauí. Seguiram em sua marcha passando pela cidade de Alto Longá, no dia 6 de janeiro, Campo Maior a 7, Pedro II a 10, e daí partiram para a cidade de Ipu.
João Alberto encontrou entre os papeis telegráficos da Estação uma mensagem enviada pelo deputado Manuel Sátiro, destinada ao coletor federal de Ipu, João Bessa Guimarães. Pedia, na mensagem, que João Bessa, com a ajuda do destacamento policial local e de grupos civis armados, impedisse a entrada dos revolucionários na cidade. Diante disso, João Aberto solicitou a presença de João Bessa e que este se explicasse no que teria respondido que o povo de Ipu é pacato, não tinha costume de lutar com armas e que a prova estava na gentileza com que a Coluna foi recebida, principalmente por seu comandante tratar-se do irmão do saudoso e amigo do Dr. Apolônio de Perga Bandeira de Barros, juiz de direito da Comarca no período de 1920-1922.
As palavras de João Bessa sensibilizaram o Tenente-Coronel e as relações entre os munícipes e as forças da Coluna a partir dali, transcorreram num clima de cordialidade.
João Alberto fez questão de seguir até o cemitério, acompanhado de João Bessa, para visitar o túmulo do irmão.Em seguida, solicitou às autoridades fundos para a Coluna, uma vez que dependia de fontes de abastecimento para manter-se e fez questão de esclarecer que a tranquilidade da localidade não seria quebrada. O Cel. José Aragão, presidente do Banco do Brasil, foi solicitado a declarar o saldo da instituição. Logo lhe foi requisitado a quantia de 16.000$000 (dezesseis Contos de réis) dos quais forneceu recibo. Joaquim Lima, grande comerciante local e presidente da Associação Comercial de Ipu, “contribuiu” com a quantia de 6.000$000. Outras pessoas contribuíram com quantias que, no final, somaram (todas) a bagatela de 25 contos de réis.
João Alberto solicitou que Joaquim Lima abrisse as portas de seu estabelecimento comercial para proceder a vendas ao destacamento, no que foi atendido. Foram gastos 5 contos de réis, devidamente pagos. Entre as aquisições estavam 3 mil balas de Winchester, conhecido no Ceará como rifle ou papo-amarelo.
Muitas residências de Ipu acolheram os revoltosos, dando-lhe guarita e comida.
No Nordeste, o objetivo da Coluna era chegar a Pernambuco. Passariam pelo Ceará, onde Manuel do Nascimento Fernandes Távora, irmão de Juarez Távora, preparava um levante na capital. Os planos foram por água abaixo ante a repressão empreendida por Artur Bernardes. Em Fortaleza, o jornal oposicionista A Tribuna, de Fernando Távora, que fazia propaganda da Coluna e atacava o governo, foi fechado e seu dono rumou para o exílio na Europa. No Piauí a repressão aos revoltosos foi intensa.
João Alberto, com cem homens partia para o Ipu, com o objetivo de se apossar dos referidos mapas e realizar um “falso ataque” contra a cidade. Deveria, ao se apossar do telégrafo, enviar falsos telegramas dando conta de que a Coluna Prestes, com intensa mobilização de homens, atacaria Sobral, Camocim e Fortaleza. O Objetivo era desviar a atenção das forças legalistas e amedrontar a população destes locais. E assim se fez.
Continua...

quinta-feira, 28 de março de 2013

A Coluna Prestes em Ipu - Parte I


Integrantes da Coluna Prestes. Fonte: http://coisadecearense.blogspot.com.br

Ao amanhecer do dia 13 de janeiro de 1926 cerca de 100 homens, maltrapilhos, com cara de poucos amigos, porém, fortemente armados, entraram em Ipu, descendo a ladeira da Mina, vindos do Piauí. Essa centena de combatentes compunha o 2º destacamento da Coluna Prestes, comandada pelo tenente-coronel João Alberto. O que eles queriam e o que aconteceu naqueles anos 20 na então pacata Ipu? Bom, o que pretendo contar em seis capítulos é apenas uma interpretação dos fatos ocorridos naqueles tempos longínquos, baseada, no entanto, em relatos e fontes históricas. Se você quiser ler, leia, portanto. Se não quiser, não leia “ora mais...”

Na madrugada do dia 13 de janeiro de 1926, a cidade de Ipu “dormia” o seu sono tranquilo. Às 5 horas da manhã, 100 homens montados e armados, vindos do Piauí, entravam na cidade de Ipu, descendo a ladeira da Mina. A Terra de Iracema acordava ao som de uma corneta, tocada por uma daquelas cem almas com “caras de poucos amigos”. À frente dele uma multidão de “revoltosos” emparelhados como que marchando em sintonia. Muitos traziam rifles apoiados em seus ombros parecendo estar “descansando” os braços do peso das armas. Os homens com rifles carregam também bandeiras encarnadas e traziam em seus pescoços lenços da mesma cor, que usavam, às vezes, para esconder os rostos.  
Muitos na cidade já estavam de pé após uma noite bem dormida, outros acordaram ao som da corneta e ainda um terceiro grupo, a dos beberrões, nem tinha dormido. Todos se admiraram com aquela cena. Uns ficaram com medo, mas outros se mostravam abismados, admirados do que viam.
            O bando desceu rumo ao centro por uma ladeira muito íngreme, seguiu por uma rua muito estreita, com poucas casas, atravessou uma ponte construída sobre o Riacho Ipuçaba, no hoje "Beco da Beínha" (ou Rua Manoel Vitor) e penetrou no coração da Cidade, na Praça de São Sebastião. Logo, aqueles homens armados se sobressaltaram ao avistar no alto da Igrejinha de nossa Senhora do Desterro, hasteada, uma bandeira vermelha. Todos se prepararam para o combate procurando ao redor, barricadas naturais, para se protegerem. Armados para o combate esperam o ataque inimigo, mas ele não vinha.
É preciso que se faça uma pausa na narrativa. Afinal, quem eram aqueles homens? O que queriam eles na Cidade de Ipu?
Aquelas cem almas compunham o 2º destacamento da Coluna Prestes, comandada pelo tenente-coronel João Alberto. Vinham do Piauí e seu destino inicial era a cidade de Ipu. Nesta cidade buscavam especificamente obter mapas geográficos detalhados dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba. No Piauí, souberam da notícia de que eles existiam e se encontravam no acervo do Gabinete de Leitura Ipuense, uma espécie de biblioteca com imenso patrimônio em livros, revistas, jornais e mapas.
Mas, por que tais mapas eram tão importantes para a Coluna Prestes? E o que essa Coluna?
Continua...

quarta-feira, 27 de março de 2013

João Martins da Jaçanã e o Caso do Ipu - Parte IV


Augusto Passos. Uma das vítimas à perseguição ao Grupo dos Martins.  Fonte:  Revista dos Municípios, 1929.  Do acervo de Francisco de Assis Martins (prof. Melo)


Espinheiro e seus soldados correram o sertão à caça de João Martins e, por onde passavam, deixavam um rastro de espancamentos e sangue.
Naqueles sombrios dias todos aqueles que fossem parentes dos Martins e mesmo seus amigos mais próximos, passaram a ser perseguidos, alguns foram presos e outros vítimas de violências.
Em fevereiro de 1915, Espinheiro mandou 12 soldados ao termo de Ipueiras, para buscar presos José Cesário Martins, com sobrinhos e genros de João Martins. Como estes declaram não saber do paradeiro do destemido procurado, foram espancados barbaramente, deixados como mortos no pátio da Fazenda Jaçanã.
No dia 8 de fevereiro o alfaiate Antônio Mororó foi espancado, por ser sobrinho de João Martins. O Major Joaquim Porfírio de Farias, ancião respeitado, passou 8 dias presos na cadeia da cidade, pelo fato de ter “cometido um crime”: ser parente e amigo de João Martins, e ai daquele que tivesse a audácia de impetrar um habeas Corpus em seu favor! O capitão José de Farias, membro do diretório do Partido Democrata, agora reduto dos rabelistas e dos Martins, fugiu da cidade para salvar sua pele e, por mais de um mês, viveu escondido no mato. Cel. José Lourenço, não esperou os golpes do punhal de Espinheiro, abandonou seus negócios e amigos e com a família se escondeu nos sertões de Crateús. Augusto Passos, advogado e Promotor Público, destituído do cargo, e ligado aos Martins, passou um dia no mato, enquanto os soldados vasculhavam sua residência. Depois se mandou para o Piauí, onde ficou cerca de dois meses, para não conhecer a fúria de Espinheiro. Ainda, Osório Martins, que em 1914 conhecera o fio da navalha dos “afilhados do Padre Cícero”, rumou para uma “temporada de caça” no Piauí, onde passou algum tempo. Como a estiagem se prolongava, conseguiu matar alguns calangos, antes de retornar!
Em Ipueiras a casa do Cel. Vicente Possidônio serviu de abrigo ao acolher muitos rabelistas de Ipu.     
Os Martins, grupo político que até então (1914) controlara o poder local não só foram brutalmente banidos de seus cargos, pelo menos num curto período de tempo, mas também duramente perseguidos. Muitos só conseguiram se livrar das prisões, espancamentos, humilhações e mesmo assassinatos, fugindo de seu torrão natal.
É importante notar que o grupo político que assumiu o poder no município, embora em alguns momentos mantivesse uma acirrada oposição aos Martins, não pactuava com a violência dessas perseguições. Pelo contrário, procuram inicialmente barrá-las e, em alguns casos, buscaram a conciliação entre as partes. Porém, estiveram de mãos atadas. Nem o intendente (prefeito), nem o Juiz de Direito da Comarca e, nenhuma autoridade municipal tinha poder para deter as violências praticadas na Terra de Iracema, com o aval do Presidente do Estado.
Os Aragão que assumiram o poder no município com todos os seus “agregados”, compadres e afins, tentaram sem sucesso deter aquela onda de perseguições na, até então “pacata” Ipu. O próprio intendente municipal à época do Governo de Benjamin Barroso, o Cel. José Raimundo de Aragão Filho, tentou, sem sucesso, impedir a caça ao Cel. João Martins da Jaçanã, com quem possuía boas relações.
Os Aragão estiveram de mãos atadas, portanto. Esperaram tanto tempo para sentir o doce gosto do poder, e, quando, enfim, conseguiram, o seu sabor transformou-se em fel. Tinham o poder de direito, isto é, juridicamente, mas não de fato. Tinham os cargos, mas não apitavam nada.
1915 pode ser tido como o ano em que o sangue dos Martins foi derramado sobre a fina areia do sertão, acostumada ao rústico e amargo sangue de seus inimigos. E a muralha, ao longe, foi testemunha deste episódio. Os coronéis de Ipu sentiram na própria pele o remédio que receitavam aos seus inimigos. Que a história não esqueça deles.


terça-feira, 26 de março de 2013

João Martins da Jaçanã e o Caso do Ipu - Parte III





            A cidade de Ipu, no dia primeiro de janeiro de 1915, amanhecera radiante. O sol castigava a muralha da Ibiapaba e produzia um verdadeiro espetáculo de cores e luzes. A cidade “acordava” e abria suas portas. No mercado se ouvia o vociferar de transeuntes, pedintes, comerciantes, mulheres da vida e daqueles que lá foram comprar sua ração diária. Em cada esquina só se falava de política, da valentia de João Martins e da mudança de poder: alguns diziam: “o coronel que se cuide. Disseram que Benjamin deu ordens para acabar com o valentão. Ouvi dizer que vai chegar uma força policial na cidade, com soldado até do exército. Agora quero ver o que vai ser!”: outros replicavam: “ah, quero é ver! O coronel vai surrar todos que não é homi de fugi do combate”.
            Enquanto o ano novo era comemorado com entusiasmo por alguns e a população exercia sua arte de “cortar e picar”, um grupo de pessoas tinha motivo de sobra para se preocupar, é que sabia, seria alvo de perseguição. Os rabelistas de Ipu, os até então temidos Martins, foram surrados do poder e nada podiam fazer. Com a queda de Franco Rabelo, estiveram de mãos atadas. Todos os cargos de mando, em Ipu, agora estavam sob domínio de seus tradicionais opositores: os Aragão. Estes que nunca comandaram a Terra de Iracema estavam sentido o delicioso gosto de governar. Mas mal sabiam eles que este doce sabor logo se transformaria em fel.
            As notícias não eram boas para os Martins. Estes sabiam por fontes seguras que o presidente do Estado designara um destacamento do batalhão de polícia para estacionar em Ipu e teria escolhido o pior de seus tenentes para executar seus planos sujos: aniquilar os Martins de Ipu.
            No ano novo muitos veriam o sol nascer quadrado. 1915 entrou para os anais da história dessa formosa cidade, como o ano em que a Terra de Iracema sentiu o gosto do sangue  derramado dos poderosos de Ipu, acostumados a “beber o líquido vermelho” de seus opositores, ou mandá-los para os porões de suas cadeias nada limpas.
            A cidade mal tinha comemorado a chegada do ano novo com os espocar dos fogos de artifícios, eis que ainda na noite do dia primeiro, chegava a Estação Ferroviária do Ipu o “asqueroso selvagem” Tenente Espinheiro, conhecido por suas técnicas de tortura e seu prazer em rasgar seus inimigos com o fio de sua baioneta e fazê-los sofrer antes de morrer: tinha prazer ao ver o sangue e o sofrimento do inimigo. Dizem alguns que era admirador dos Assírios, povos da Mesopotâmia conhecidos por suas técnicas cruéis de tortura ao inimigo. Vinha acompanhado de 100 praças e recebera ordens terminantes de Benjamim Liberato Barroso, presidente do Estado, de não poupar munição, não economizar no sangue derramado do inimigo e não se acanhar na tortura daqueles que não colaborarem com a polícia.
            No mesmo dia primeiro, no meio da noite, seguiram para a fazenda Jaçanã para cumprir o que lhes fora determinado. Deveriam chegar de surpresa e antes que alguém avisasse ao coronel. O objetivo era massacrá-lo com toda sua família. Ao chegar próximo à fazenda e cercá-la, pela manhã, a soldadesca rompeu em cerrada fuzilaria contra a casa principal da fazenda. Na ocasião, encontravam-se em casa somente João Martins e Antonio Rodrigues (Chapéu Grande), seu fiel capanga, e dois menores seus netos (na verdade afilhados), que momentos antes saíram para um cercado, junto à casa, para dar água a animais. Um deles foi morto barbaramente, trucidado pelas balas, e o outro foi salvo por outro praça que o escondeu de seus companheiros para que não fosse morto.
            O furor da artilharia foi tal que o telhado da casa ficou em cacos. Como ali não encontrou viv’alma, o tenente ordenou à destruição da fazenda: impossibilitado de saciar seu desejo de espichar o coro do coronel João Martins com as próprias mãos e, tomado por uma cólera insuportável, saqueou a fazenda. O que não pôde levar queimou. Alguns soldados esvaziaram latas apinhadas de querosene sobre a casa e os depósitos de farinha, milho, feijão, algodão e tudo o mais. A fazenda foi quase totalmente destruída.
            Entre os documentos saqueados um soldado encontrou a patente de coronel concedida a João Martins pela Guarda Nacional, título que impunha respeito e medo. De pirraça e para humilhá-lo, com ordens de Espinheiro, os soldados enfiaram-na em uma estaca na frente do que restou da abastada Fazenda Jaçanã, como quem diz: “eis a patente de um coronel sem fazenda”.
            João Martins e Chapéu Grande, antes disso, ganharam o mato. Espinheiro e seus soldados procuraram-nos como animais, sem resultado, pelas fazendas das redondezas.
Ainda em janeiro os soldados empreenderam outra investida à Fazenda Jaçanã, destruindo o que teria restado do primeiro incêndio, sendo ali, espancadas, diversas pessoas, inclusive dois sobrinhos do Coronel João Martins. Ao cercar a casa do Cel. Felix Martins (irmão de João Martins), foram presos seus filhos, genros e agregados (8 pessoas), além dos espancamentos feitos no local.
Continua...

segunda-feira, 25 de março de 2013

João Martins da Jaçanã e o Caso do Ipu - Parte II



Franco Rabelo. Presidente do Estado do Ceará entre 1912 e 1914. A sua queda derruba os Martins. Fonte: http://www.enciclopedianordeste.com.br
           
             João Martins, o destemido e lendário coronel do “sertão”, havia lavado sua honra. Após atacar a cadeia com seus “jagunços” e humilhar o poder instituído, dormiria tranquilo, por enquanto. Mostrou à polícia e a cidade quem de fato detinha o poder. Só deixou o Ipu após um acordo e muito insistência do chefe de polícia e o juiz da Comarca. Todos temiam uma guerra, pois era certa a vinda de policiais do destacamento de Sobral para manter a ordem e honrar o poder instituído.

A Conjuntura

            O Coronel parecia não estar a par ou ligar para a conjuntura política. Naquele momento os Martins de Ipu haviam sido depostos do poder e os cargos, um a um, foram assumidos por seus tradicionais opositores: os Aragão. Isso assim se deu pela própria mudança da conjuntura política estadual e federal.
            Os Martins e sua parentela estiveram imbricados com a política oligárquica. Apoiavam Nogueira Accioly, chefe da oligarquia estadual, e recebiam carta branca para governar a cidade de Ipu. O comendador Accioly, por sua vez, apoiava o candidato ao governo federal indicado pelo PRP (Partido Republicano Paulista) e recebia carta branca para os mandos e desmando no Estado.      
            Mas, em 1910 esse esquema montado por Campos Sales (Política dos Governadores) sofreria uma fissura com a eleição de Hermes da Fonseca para a presidência. Hermes adotou uma política conhecida como salvacionismo, que consistiu em promover uma substituição dos oligarcas estaduais por outras, com o objetivo de “moralizar” a política federal e sob a alegação de que as oligarquias estaduais, com sua corrupção e desmandos, emperravam a administração e desenvolvimento do país. No Ceará foi lançada a candidatura do salvacionista Franco Rabelo e que derrotou Accioly.
            Mesmo com a queda do Comendador Accioly e a ascensão do salvacionista Franco Rabelo, os Martins mantiveram o poder local numa manobra bem orquestrada, apoiando as forças dissidentes, ao lado de Paula Rodrigues - a quem conheciam muito bem e mantinham relações amistosas -  que deram suporte a candidatura de Franco Rabelo à presidência do Estado em 1912. Em troca do apoio a Franco Rabelo, mantiveram, momentaneamente, o poder em Ipu, o que lhes valeram o apelido de “Vira-cassaca” dos seus opositores locais, os Aragão, sedentos pelo poder. Só mais tarde estes teriam o prazer de sentir o gosto de governar.
Vencedor nas urnas e assumindo a presidência do Estado em 1912, Franco Rabelo governaria, no entanto, só até 1914, derrubado por uma conjunção de forças estaduais e federais, com destaque para a Sedição de Juazeiro.
Este cenário político estadual e federal provocou consequências nefastas para a política ipuense do período. Com a queda de Rabelo, caíram em Ipu, os Martins. Estes não só perderam o poder, mas também foram perseguidos, como “cães sarnentos”, duramente pelo governo do Estado.
Decretada a intervenção para o Ceará em março de 1914, assumiu o governo o general Setembrino de Carvalho, que mandou de volta para Juazeiro os “revolucionários” do Padre Cícero. Não obstante, muitos dos “jagunços” foram incorporados ao Batalhão de Segurança Pública e logo começaram a “cometer desordens, perturbando a tranquilidade das famílias”, sendo vítimas de atrocidades os adversários do novo governo e aqueles mais próximos ao rabelismo.
 Muitos desses “jagunços” incorporados ao poder repressor foram enviados ao interior para perseguir os rabelistas. Ipu é um destes casos. Osório Martins sentiu na pele o gosto amargo de seu próprio sangue, ao sofrer afrontas de tais jagunços, pelo simples fato de ser um Martins.
Logo após a queda de Rabelo, estacionaram na cidade de Ipu, “policiais”, “jagunços do Padre Cícero” que passaram a hostilizar e perseguir os rabelistas, notadamente os Martins. Foi deposto da intendência do Município de Ipu, em 3 de abril, o Tenente Coronel Aprígio Quixadá e dissolvida a Câmara, empossada por Accioly em 1912 e que havia permanecido no poder mesmo após sua queda.
Foram exonerados do cargo de promotoria de justiça, Dr. Leonardo Mota, e da delegacia, seu primo Manoel Vitor, ambos ligados aos Martins. Em seguida, os antigos rabelistas – agora democratas – passaram a ser perseguidos, hostilizados. O Ipu viveu um verdadeiro banho de sangue.            
O Cel. Benjamin Liberato Barroso, que assumiu a presidência do Estado em junho de 1914, mandou uma força policial para a cidade de Ipu com ordens de perseguir e aniquilar os rabelistas, notadamente os Martins. A ordem era para matar e não poupar munição.
João Martins da Jaçanã só complicou as coisas. Mal sabia ele que o poder dos Martins, de seu grupo, era coisa morta e ainda afrontou a ira do poder instituído em um momento de ânimos cerrados. Perderia tudo, teria sua fazenda totalmente destruída, seus parentes afrontados e veria o sangue de pessoas próximas sendo derramado. Após o ataque a cadeia, João Martins passou a ser o alvo principal das perseguições. A ordem do governo era para exterminá-lo, matar seus “capangas”, acabar com sua fazenda, perseguir, afrontar, prender e, mesmo, matar seus familiares.
Após o episódio do ataque à cadeia, portanto, se seguiu uma intensa perseguição ao Coronel João Martins, empreendida pelo presidente do Estado. Seguiu-se, também, uma série de perseguições, espancamentos e assassinatos no município. Os Martins de Ipu esvaziaram a cidade. Piauí, Ipueiras, Crateús, Nova Russas foram seus principais refúgios. Só retornaram quando os ânimos estiveram calmos.
Continua...


domingo, 24 de março de 2013

João Martins da Jaçanã e o Caso do Ipu - Parte I



Cel. João Martins da Jaçana. Fonte:http://pilotofrancomartins.blogspot.com.br

Em 1914 a cidade de Ipu foi palco de um dos mais atrozes episódios de sua história. Conhecido como “O caso de Ipu”, o fato revela as disputas e embates políticos da época na Terra de Iracema. As grandes vítimas foram os membros da “oligarquia” dos Martins, com destaque para os espetáculos chocantes vividos pelo destemido e lendário Cel. João Martins da Jaçanã. Em quatro capítulos, e baseado em fontes históricas, conto um pouco e interpreto o episódio. Boa leitura...

Eram quase cinco horas da manhã do dia 9 de dezembro. O ano: 1914. Cerca de 5 policiais e alguns “capangas” armados esperavam na Estação Ferroviária desde às 3 da madrugada a chegada à cidade do destemido cel. João Martins da Jaçanã, com seus “jagunços”. Os policiais usavam como escudo os inúmeros fardos de algodão (da firma J. Lourenço & Cia) que aguardavam a chegada do trem na gare da Estação para o seu embarque até o porto de Camocim. Estavam exaustos por uma noite mal dormida. Resolvem ir embora, pensavam que a notícia de que o coronel invadiria a cidade com seu bando não passava de um Boato.
João Martins morava em sua fazenda, Jaçanã, distante 6 Km da sede do município. Irmão do líder político local, Cel. Felix Martins, estava insatisfeito, furioso e “botando fumaça pelas ventas”, afinal no dia anterior políciais que vieram da região do Cariri, “afilhados do Padre Cícero”, haviam dado uma surra em seu sobrinho, o capitão Osório Martins, dentro do estabelecimento comercial (Farias & Martins) em que era sócio, no mercado público.
Como membro da extensa família dos Martins e que dominara a política local desde a montagem da oligarquia aciolina a partir de 1896, estivera acostumado a sentir o gosto do poder. Ninguém seria capaz de afrontá-lo, a seus familiares e agregados sob pena de levar uma surra corretiva ou passar alguns dias nada agradáveis na cadeia pública. O Ipu, pode-se dizer, “pertencia aos Martins”. O Juiz, o Promotor, o delegado e todos os principais postos de mando estavam em suas mãos e ai daquele que se metesse com um deles, o cemitério poderia ser sua morada eterna.
Mas, em 1914 os Martins perderam o poder e passaram a ser perseguido pelo Governo do Estado. Durante o governo de Benjamin Liberato Barroso foi empreendida uma verdadeira escalada contra os grupos de jagunços sob a chefia dos coronéis, principalmente da região do Cariri, para onde foi enviada numerosa força militar com recomendações de eliminar todos os “bandidos”: “Não poupe bandidos. Execute-os sumariamente”, havia dito o governo do Estado.
Para o Ipu, agitado naquele momento, o mesmo remédio fora recomendado. Só assim se explica a intensa perseguição ao Cel. João Martins da Jaçanã e, de um modo geral, aos Martins de Ipu, que tiveram de fugir para não serem alvo de atrocidades. Porém, o Episódio que comecei descrevendo é um pouco anterior. Deixemos para a segunda parte a perseguição aos Martins.

O Cenário
Insatisfeito com a perda do poder e se sentido humilhado pela surra dada por policiais em seu sobrinho, o coronel não pensara duas vezes. Embora se encontrasse enfermo, invadiria a cidade, atacaria a cadeia, exterminaria os policiais se possível e libertaria seu sobrinho da suposta prisão. Mostraria a todos quem tinha o poder de fato. Preferia morrer a se submeter à “justiça”.
Passageiros e transeuntes que aguardavam a chegada do trem das 6h na Estação avistaram ao longe uma multidão que avançava a passos largos pela rua Boulevard Dr. João Pessoa, hoje Avenida Auton Aragão (ou “rua dos Canudos”). Eram 50 homens, dos quais 30 montados e que tinham à frente o lendário e destemido Cel. João Martins com cara de poucos amigos. Vinha bufando, literalmente, com sede de sangue e pronto a vingar-se da humilhação sofrida. O relógio marcava pouco mais de 5h. Os policiais já não se encontravam mais ali. Tomavam café no “quartel” (cadeia), no prédio da Casa de Câmara (antiga prefeitura), no pavimento inferior. Riam, se divertiam e comentavam: “esse tal coronel não é tão valente quanto pinta a população; “deve ser um borra-botas”; “ele que venha que tenho bala sobrando!”.
Logo que chegaram à Estação, o Coronel e seu bando cortaram os fios do telégrafo deixando a localidade sem comunicação com outros municípios para impedir pedidos de reforços, sobretudo ao destacamento de Sobral. Avançaram pela atual rua Cel. Felix em direção à cadeia. Pretendiam cercá-la por todos os lados, mas os planos foram por água abaixo quando um tal Jandaia Passos - que passara a noite bebendo, talvez no Curral do Açougue (Cabaré), se divertindo com as “cutruvias”, gritara: “Se aprontem, soldados, para morrer!” Foi o bastante para alertar os políciais, que abriram fogo contra o bando que se preparava “para o bote”. As expressões faciais alegres dos policiais deram lugar ao assombro... Iriam conhecer a fúria e o poder de fogo do Coronel!
Das 5 às 9 da manhã do dia 9 de dezembro de 1914 ficou a cidade sob fogo cerrado dos “jagunços fardados” e dos “capangas” de João Martins da Jaçanã. O Mercado que abria suas portas fechou-as encerrando em seu interior aqueles que ali estavam.
Os jagunços do coronel avançavam usando as grossas árvores como escudos, outros se posicionando em seus galhos para buscar o alvo. Tomar a cadeia era apenas uma questão de tempo.
Logo caiu morto, vítima de uma bala certeira, um dos soldados.  Era Antonio Pereira, irmão do agressor de Osório e um dos cinco policiais que vieram do Cariri. Percebendo o perigo, correram o comandante Assunção e seus soldados, para esconder-se na casa de D. Madeirinha Memória, viúva do Dr. Francisco Memória. Da casa que ficava em um dos lados da Cadeia os soldados mantiveram o fogo.
Porém, sabedor de que Osório não estava preso ali, na cadeia, e após gastar mais de mil cartuchos e deixar a Cadeia e Casa de Câmara com as marcas do episódio, João Martins e seu bando cessam fogo. Estava abortado o plano de tomar a cadeia. Em entendimento com o chefe de polícia do destacamento, João Martins exigiu que os “cachorros fardados”, “os afilhados do Padre Cícero” fossem expulsos da cidade.
A pacata cidade de Ipu vivia um de seus episódios mais sangrentos. O ataque à cadeira empreendido pelo coronel João Martins era apenas o início de um banho de sangue que viveria a pequena, mas próspera, urbe do “sertão”.

Continua...
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sábado, 23 de março de 2013

Bairros do Ipu e suas curiosidades (parte II)


Ferrovia chegando ao Ipu. O crescimento de alguns bairros está ligado ao trem. Fonte: domínio  público

Outros bairros
            No início do século XX novos núcleos de povoamento dariam, mais tarde, origens a alguns bairros. São os casos do Corte, Pereiros, Pedrinhas e Canudos.

Bairro Corte

            É assim chamado em função das obras de construção da Ferrovia que abriram caminho em meio a um “barranco” com altura aproximada de 5 metros. A partir daí o casario começou a ser edificado de um lado e outro dos trilhos da ferrovia. Desde então, a localidade passou a ser denominada de Corte. Embora alguns autores afirmem que o bairro surgiu a partir da chegada do trem em Ipu, na última década do século XIX, nada, no entanto, comprova isso. Porém, é indiscutível que o povoamento na localidade se desenvolveu a partir da chegada “monstro de ferro”. O logradouro cresceu e se ligou a outros, como os Pereiros e Canudos.

Pereiros

            Bairro que também cresceu muito a partir da chegada da ferrovia. Pouco se sabe sobre o seu nome. Para alguns, havia na localidade uma grande e bonita árvore chamada Pereiro. Com as obras da ferrovia teria sido aquela árvore cortada, deixando na localidade um imenso tronco. A partir de então os moradores dali teriam passado a se referir à região como Pereiros.

Pedrinhas

            Tem esse nome em função da Seca de 1932. Nesta ocasião foi erguido em Ipu, na localidade do Espraiado, um Campo de Concentração de flagelados da seca. O Campo era um local que reunia os famintos para a assistência do governo. A mão de obra dos assistidos foi amplamente usada para as obras do município, principalmente na pavimentação das ruas. Muitos deles transportaram pedras da localidade, onde hoje é aquele bairro, para o centro da cidade. As pedras serviam para os “calçamentos”. Muitas ruas de Ipu foram pavimentadas com as pedras tiradas de lá.
            Com o fim da seca e o fechamento do Campo de Concentração, alguns dos assistidos, muitos vindos de outras cidades, se estabeleceram nos subúrbios da cidade, alguns deles nas Pedrinhas. No entanto, a ocupação da região é anterior à seca de 1932. É a partir dela que surge o nome do bairro.

Canudos

            A denominação do bairro é oriunda do nome de uma rua: “Rua dos Canudos”. Até hoje é assim chamada por seus moradores e pela população da cidade. A Rua dos Canudos teve esse nome por ter morado ali Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, cuja família é oriunda de Quixeramobim, vinda para estas paragens por volta de 1888. Casado com uma jovem de nome Mariazinha, foi por ela traída. Expulsou-a de casa junto com o seu amante, o soldado Joelino Souza. Desde então, segundo algumas narrativas, passou a ter comportamento estranho. Passou a pregar e foi se estabelecer no Arraial de Canudos.
            Na época em que se desenrolava o confronto de Canudos com as forças do governo republicano, veio se estabelecer na Rua dos Canudos, que ainda não tinha esse nome, um tal Antônio Lopes de Negreiros para, com seus irmãos, trabalhar na construção da estrada de ferro. Após os trabalhos na ferrovia e com dinheiro levantado com outras atividades, o tal Lopes ergueu uma Grande bodega naquela localidade. Depois, sem se saber o motivo, ficou valente. Quase todo dia havia briga em sua bodega. Os seus fregueses começaram a desaparecer e mesmo aqueles que precisavam passar por sua rua, iam por longe, com medo. Exatamente naquele momento se desenrolava os conflitos em Canudos. A população, então, que sabia que o conselheiro morara na localidade passou a chamá-la de Rua dos Canudos, por causa do líder de Canudos e da valentia do Lopes.


Grota

Nas primeiras décadas do século XX o hoje chamado Bairro da Grota era praticamente desabitado. Segundo alguns relatos, as prostitutas do cabaré da Rua da Mangueira, erguido próximo ao atual Ginásio de Esportes Abdoral Timbó, iam, no inverno, lavar roupa no riacho chamado à época de Grota. Logo a população passou a apelidar aquele lugar de Grota das CunhãsNote-se que a palavra “grota” pode tem um sentido pejorativo e jocoso. É daí que se origina o nome do Bairro.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Bairros do Ipu e suas curiosidades (parte I)



Vista parcial do Centro da Cidade. Fotografia de 1940. Álbum do Centenário. Documento original do acervo de Francisco de Assis Martins (prof. Melo)

Os Primeiros Bairros

            Os primeiros estudiosos da nossa história, como é o caso de Eusébio de Sousa, demonstram que, no início, até as primeiras décadas do século XX, a cidade contava com poucos bairros. Um deles o Papo (Quadro da Igrejinha), onde teria nascido a cidade, outros, o Reino de França, o Alto dos 14 e a Lagoa. Mais tarde, no entanto, novos núcleos de povoamento tornaram-se bairros, tais como, o Corte, os Pereiros e Pedrinhas. Algumas curiosidades estão ligadas ao nome destes logradouros.


Reino de França


            Tem esse nome, segundo a versão mais provável, por ter se estabelecido ali, desde cedo, um pardo, segundo Eusébio, ou “um preto”, segundo Francisco das Chagas Paz, de sobrenome França. As primeiras residências estabelecidas na região eram casebres, feitos de Taipa. Luiz de França teria estabelecido sua liderança e autoridade no lugar, comandando, segundo uma versão, “alguns desordeiros, homens affeitos a toda sorte de orgias, os quaes obedeciam ao mando” do França (SOUSA, 1915, p, 202). Porém, o preconceito da sociedade ipuense, frequentadora dos salões do Grêmio, que nos legaram alguns trabalhos, para com os moradores da periferia, pode ter contribuído para nos deixar uma versão negativa daquele bairro. Até a década de 1960 a maioria das casas do Reino de França ainda era de edificações de taipa.

Alto dos 14

            Seu nome também estaria ligado a um de seus moradores, um mestiço que, chefe de uma família de 14 filhos, morava na subida da serra. Ele também teria se tornado uma espécie de líder local, além de comandar seus 14 filhos varões. Logo, teria se estabelecido uma rixa entre os homens comandados por França e aqueles comandados pelo líder do Alto dos 14, de sorte que quando havia samba no Reino de França, o pessoal do Alto dos 14 não ia, sob pena de brigas terríveis. Da mesma forma, nos sambas do Alto, o pessoal comandado por França, também não comparecia.

Lagoa

            Assim chamada pelo fato de ter sido construído ali, um açude ou lagoa, segundo Francisco de Assis Martins, pelo português Manoel Palhares Coelho.
            No início do século XX, a região mais central da cidade e o Quadro da Igrejinha concentravam as melhores residências, de alvenaria e cobertura de telha. Nos subúrbios, a maioria das residências era de taipa e de palha. A Lagoa, por sua vez, possuía excelentes casas e alguns casarões, bem como edificações de taipa.

quinta-feira, 21 de março de 2013

O Campo de Concentração do Ipu - Parte III



Os Retirantes - quadro de Cândido Portinari 

O medo

Essa grande leva de retirantes que acorreu para o município de Ipu em busca do Campo deixou aflita e apreensiva a população local, em especial as classes mais abastadas, afinal, em menos de um ano a população urbana havia mais que duplicado. Essa invasão gerou expectativas e aterrorizou os habitantes da cidade. O medo dos saques, no início foi uma constante, pois chegavam à região as notícias deles na capital e no interior.
 Diante disso, desde o início a preocupação maior das autoridades foi com o controle e disciplinamento dos retirantes. A assistência só era feita no interior do Campo. Havia vigilância permanente. Uma vez assistidos havia uma preocupação em manter os flagelados no “curral”, para que estes não atingissem a área urbana da cidade. A própria localização do Campo distante do centro facilitava a vigilância e o controle. Mesmo assim, não raras vezes, muitos famintos atingiam o centro da cidade.
 O medo das revoltas e dos saques, das “doenças” e da “criminalidade”, da “mendicância”, dos “desvios morais”, da “prostituição” que agride o “pudor das senhoras” e “senhoritas distintas’, levou o poder público, pressionado por grupos de pessoas abastadas, a adotar estratégias de confinamento e controle dos “indesejados”.
Todo um aparato político-administrativo, religioso, policial e médico concorreram para a execução desse receituário, visto serem eles mesmos os representantes das “elites”.
O policiamento e a vigilância nos Campos eram ostensivos. O movimento dos flagelados era vigiado constantemente. Dos Campos só poderiam sair, teoricamente, com a autorização dos inspetores. A Igreja católica, também se fazia presente. Além de levar aos miseráveis o conforto da palavra de Deus, reforçava a vigilância e o controle dos famintos. Deveria torná-los mais obedientes e dóceis. “Os pobres não se maldiziam, não se revoltavam, mesmo porque o padre dissera no sermão que ali proferira, à hora da missa campal: - ‘Todos se confortassem com a vontade de Deus. São Sebastião livraria da peste. Aquela seca era para purgar os pecados. Mais difícil era um rico entrar no céu que um camelo passar no fundo de uma agulha’. E eles chegavam a acreditar, achando que havia compensação na sua pobreza – e nunca se revoltaram”, anotou Magalhães Martins.
No Campo do Ipu o vigário Monsenhor Gonçalo Lima, semanalmente, celebrava missas, casamentos, batizados. Ali foi erguida uma capela, onde o padre celebrava os cultos religiosos para a “cidade dos pobres”.
O saber médico também estava presente no Campo de Concentração. Todos que chegavam deveriam ser vacinados. Havia uma preocupação com a vacinação constante dos assistidos. Embora a vacinação fosse obrigatória, muitos, não acostumados, resistiam. Também havia uma preocupação muito grande com as condições de higiene, como vimos. Não obstante, as epidemias não foram evitadas. O tifo, a “desenteria”, o sarampo e outras doenças ceifaram muitas vítimas.
Todo um aparato coercitivo era justificado pelo medo que as aglomerações de retirantes geravam na população. As doenças contagiosas era um dos espectros que rondavam os “currais” dos “bárbaros” e aterrorizava as classes dominantes. Seu combate tinha que ser incessante sob pena de extrapolar os “muros” do Campo e atingir as famílias “distintas”. Havia no Campo do Ipu uma média diária de seis a sete mortos. Só entre abril de 1932 e março de 1933 registraram-se, de acordo dados de Kênia Rios, mais de 1.000 mortos.

Saiba Mais

ARAÚJO, Raimundo Alves de. Ipu: Da Ocupação do Espaço Urbano ao Campo de Concentração. Monografia de graduação do curso de história da UVA. Sobral, 2003.
RIOS, Kênia Sousa. Campos de concentração do Ceará: isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza; Museu do Ceará / Secretária de Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
NEVES, Frederico de Castro. A multidão na história: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense. Tese de doutoramento, 1998.





quarta-feira, 20 de março de 2013

O Campo de Concentração do Ipu - Parte II




O Campo de Concentração do Espraiado

O Campo de Concentração do Ipu foi o único erguido à beira da Estrada de Ferro de Sobral. O objetivo de sua criação naquela localidade foi justamente assistir a população da zona norte e noroeste do Estado do Ceará, impedindo o seu deslocamento, pela via férrea, para algumas cidades da região, como Sobral e Camocim e, principalmente, à capital.
Os Campos de Concentração, no interior, foram erguidos em locais ligados às grandes rotas de expulsão de flagelados em momentos de seca. A maioria no sertão central, a área interiorana mais assolada pela estiagem. Sempre próximos a uma estação ferroviária, não só barrava a emigração, mas, da mesma forma, possibilitava um maior controle sobre as “vítimas” da seca. 
Não fugindo a regra, o Campo de Concentração do Ipu foi erguido próximo à ferrovia, porém, distante 3Km do centro urbano da cidade facilitando, desta forma, o controle sobre as vidas dos assistidos. Próximo e entre dois bairros periféricos atuais, Pedrinhas e Alto da Boa Vista, e também próximo ao cemitério, foi pensado visando conter as tensões sociais que uma aglomeração daquele porte suscitava.
O Campo era ao mesmo tempo desejado e indesejado pelas elites locais. Se, de um lado, representava o perigo de contágio de doenças e revoltas, por outro, gerava um montante de recursos financeiros impensáveis em condições normais. Em nome da assistência e do amparo “humanitário” toda uma gama de obras públicas, seja de melhoramentos urbanos, seja de infraestrutura – desejo da “classe dominante local” – foram possibilitados. Tais obras só foram possíveis também com a mão de obra quase gratuita dos flagelados.
A um só tempo, a seca gerava miséria e abundância, amor e ódio, disciplina e indisciplina. Pobreza e riqueza, nesse momento, são duas faces da mesma moeda. A primeira é indesejada. A segunda é ansiada.
Para minimizar sua face mais “perversa” é criada, na esteira do que ocorria na capital, pelas autoridades, uma estratégia de controle social e disciplinamento dos famintos. Era preciso mantê-los afastados do convívio social urbano e da “mendicância”. A seca foi amplamente utilizada pelas autoridades para angariar recursos necessários às obras de infraestrutura e de melhoramentos urbanos. Foi assim na capital e no interior do Estado. Os retirantes, ao mesmo tempo em que suscitavam problemas de toda ordem, representavam também a esperança na obtenção de recursos e uma mão de obra quase gratuita, amplamente usada nas obras públicas.
Em Ipu a administração lançou mão amplamente da força de trabalho dos flageladas. A cadeia pública, a pavimentação das ruas, reformas de praças, abertura de novas estradas, enfim, um grande número de obras foram empreendidas com o braço dos flagelados.
A imposição do trabalho aos assistidos visava combater o ócio, o grande inimigo da “ordem” e da “disciplina”. A contrapartida da assistência era o trabalho disciplinador. Um dos princípios fundamentais de concentrar em um mesmo lugar a assistência aos flagelados era sua relação com o recrutamento do trabalho para as obras públicas. Ao mesmo tempo em que facilitada à organização de frentes de trabalho, permitia o seu disciplinamento e controle. O ócio dos flagelados era combatido frequentemente pelo poder público, pois causava “desvios morais”, “mendicância” e “vadiagem”. Desta forma, só o trabalho poderia corrigir aqueles vícios. Portanto, a assistência deveria estar atrelada à obrigação ao trabalho dos flagelados válidos. A estes, dificilmente restava outra alternativa a não ser submeter-se a um regime de trabalho pesado e disciplinador.

A organização do Campo do Espraiado

A criação dos Campos de Concentração, desde o início, foi pensada não simplesmente para facilitar a assistência, mas para, através dessa assistência, controlar os flagelados. O disciplinamento e a organização do trabalho deveriam ser os principais objetivos. Para manter o controle e a ordem havia, de acordo com o Jornal O Povo, que esteve no Campo de Concentração do Ipu em julho de 1932, “20 homens com relativa instrução militar e que se encarregava do policiamento local”.
Havia ainda uma grande preocupação com a higiene. Para isso existiam feitores e inspetores sanitários, duas assistentes e enfermeiros, cadastradores e varredores. Ainda de acordo com a matéria do Jornal O Povo, ao entrar no Campo, cada “flagelado” era cadastrado e logo enviado à seção de vacinação, sendo esta obrigatória, “sem qualquer exceção”.
Para o poder público e os grupos de pessoas abastadas a principal preocupação era com a chamada “desordem social”. Logo que o Campo de Concentração do Ipu foi erigido e a notícia de que o governo estava assistindo os flagelados naquela localidade, um número muito grande de famintos das regiões circunvizinhas acorreu para a cidade de Ipu em busca de amparo. A área urbana do município que contava com não mais de 6.000 habitantes, em pouco tempo recebeu mais de 7.000 flagelados, de acordo com os números oficiais. A maioria dos retirantes vinha das regiões adjacentes ao município, mas também chegavam retirantes das regiões mais distantes.
Não se sabe ao certo o número exato de flagelados assistidos no Campo de Concentração da Terra de Iracema, uma vez que houve indícios de fraude na sua administração, a cargo de Joaquim Lima, interventor municipal (1930-1935). Embora os números do governo apontem para uma população de 9.000 assistidos, para o médico que trabalhou no Campo, Francisco Araújo, o “curral” chegou a confinar 20.000 flagelados.
A maioria dos retirantes vinha das regiões adjacentes ao município, mas também chegavam retirantes das regiões mais distantes. Francisco Magalhães Martins que vivenciou aquele momento escreveu em seu livro de contos, Mundo Agreste, aquele episódio: “O comboio apanhava mais flagelados em cada estação – Pinheiro, Novas Russas, Ipueiras. Nos vagões se confundiam homens, mulheres, meninos e velhos, com os bichos brutos (...). Também, em promiscuidade, os sadios e os doentes – tuberculosos, epiléticos, assezoados, até loucos (...). Vinha gente de diferentes regiões – do centro e dos confins do Estado, do Alto Jaguaribe. Todos demandavam Ipu como a Terra da Promissão. Correra a notícia exagerada de que não faltava inverno na Serra Grande, feito um celeiro, sendo o Ipu, ao sopé da cordilheira, o escoadouro dos produtos. Os que conheciam a cidade falavam da bica do Ipuçaba, caindo da serra, perenemente, sem nunca ter secado. Não faltava água. Ademais o Campo-de-Concentração era a garantia de que ninguém morreria de fome. Falavam em legumes, em frutas, em farinha e rapadura. Ah! Haveria fartura em Ipu – a Canaã tão desejada!...”

terça-feira, 19 de março de 2013

O Campo de Concentração do Ipu (1932)



O Campo de Concentração do Ipu (1932) - Parte I

 Fonte: domínio público. Autor desconhecido
No início da década de 1930 a cidade de Ipu viveu um período inusitado e conturbado. De local que expulsava retirantes da seca passou a recebê-los. Os três anos de seca que começou em 1932 e os horrores provocados pelo flagelo levaram as autoridades estaduais a adotar uma nova postura política para lidar com a questão. Assim, para impedir as levas de retirantes que saiam do interior em direção à capital, foram erguidos em todo o Ceará, nesta época, sete Campos de Concentração.

Campos de Concentração no Ceará?

Os Campos foram locais criados pelo governo com o objetivo de isolar e assistir os retirantes famintos. Eles foram erguidos em locais longe dos centros das cidades com o objetivo de se exercer sobre eles um controle rigoroso, dissipando o perigo de saques, doenças e as “imoralidades” trazidas pelo flagelo.
Diante do medo que uma multidão de famintos causava aos moradores das cidades, foram criados espaços de confinamento dessas massas “indesejadas” onde fosse possível não apenas prestar assistência, mas também e, principalmente, exercer um controle social e uma disciplina permanentes.
Os Campos de Concentração criados pelo interventor estadual em 1932, buscavam, em teoria, barrar as levas de retirantes em direção à capital e outras cidades do Estado, sendo erguidos em locais estratégicos próximos às ferrovias. Nesses locais, grande parte dos flagelados era recolhida a fim de receber, do governo, assistência alimentar e médica. Junto com a assistência vinha o controle.

Como surgiu a ideia do Campo de Concentração para flagelados?

A criação dos Campos de Concentração não era uma novidade da seca de 1932. A primeira experiência se deu na capital na seca de 1915, criado para impedir os transtornos trazidos pelos retirantes na terrível seca de 1877-1879. Nessa ocasião, a cidade foi invadida e ocupada por mais de 100 mil retirantes, um número quatro vezes maior do que sua população. “Epidemias, crimes, desacatos à recatada moral das famílias provincianas, tragédias indiscutíveis se desenvolveram à vistas de todos: assassinatos, suicídios, saques, loucuras...”.
 A iniciativa tomada em 1877 foi a construção de abarracamentos em diversos pontos da cidade de forma mais ou menos aleatória. O imenso número de retirantes chegados a Fortaleza e a inexistência de uma política mais rígida de controle da multidão geraram inúmeros transtornos para a população local. Os três anos de estiagem possibilitaram uma fulminante epidemia de varíola, que vitimou mais da metade dos 100 mil retirantes “alojados” nos abarracamentos, deixando em pânico a população da capital.
Só em um dia, em 10 de dezembro de 1878, recebeu o cemitério do lazarento, 1.004 vítimas da epidemia, ficando este dia conhecido e gravado na memória da capital como “o dia dos mil mortos”.
Na seca de 1877-1879 Fortaleza já se descortinava como o grande polo econômico do Ceará. Não estava preparada para receber aquela imensidão de retirantes. No entanto, a seca de 1877-1879 representou para o governo um aprendizado.
Com o recrudescimento do flagelo, após as secas de 1898 e 1900 – esta em menor proporção devido ao bom inverno do ano anterior – em 1915 acorreram à capital novas levas de famintos, na esperança de serem amparados pelo governo. Neste momento, as estradas de ferro exerceram grande importância no transporte dos retirantes, contribuindo para aumentar, a cada dia, o número de flagelados que buscavam a capital. Teve aí a primeira experiência de criação dos Campos de Concentração. Era preciso não permitir o ocorrido na seca de 1877-1879.
Agora a estratégia, respaldada pelo saber médico, era confinar os retirantes em apenas um local onde fosse facilitado não só a distribuição de socorros, mas também, e principalmente, fosse possível manter um controle rigoroso e uma disciplina permanentes sobre os flagelados.
A estratégia de criação dos Campos de Concentração no Ceará na seca de 1932 buscava barrar a chegada em Fortaleza dos flagelados. Os cinco campos erguidos no interior estavam localizados em regiões estratégicos de forma que impedisse a saída dos retirantes em direção à capital. Os outros dois erguidos em Fortaleza localizavam-se na periferia, longe da região central da cidade.
No interior, a assistência e o controle deveriam impedir a chegada de grandes levas de retirantes, comum em outras secas. Em Fortaleza, embora os campos estivem localizados nos subúrbios, não raras vezes, vários retirantes conseguiram atingir os bairros nobres.

Continua...

segunda-feira, 18 de março de 2013

O pastor e sua maldição



Deputado Marco Feliciano. Fonte: google.com.br
O pastor da Igreja Assembleia de Deus, deputado Marco Feliciano (PSC-SP), foi eleito pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para presidir o colegiado. O fato chocou o país e levou a protestos por sua renúncia. O pastor-deputado, em muitas declarações, atacou negros e homossexuais. Por várias vezes, no Twitter e em cultos, declarou que o continente africano era amaldiçoado, que os africanos eram descendentes de Cam, amaldiçoado por seu pai, Noé.
            Essa mesma interpretação foi dada pela Igreja Católica no limiar da Era Moderna e não é original em nada. Enquanto esta foi usada para justificar a escravidão negra, aquela defendida pelo pastor é uma justificativa para o seu impregnado racismo.
Na Idade Moderna, a Igreja Católica foi braço do poder político, e uma das bases de sustentação das monarquias europeias. Com a expansão marítima, tais monarquias deram início à colonização de territórios fora de seus reinos e além-mar. Na exploração das colônias, adotaram o trabalho escravo e africano. A Igreja, por sua vez, condenava a escravidão, mas não tinha força política para combater as monarquias. Diante do impasse, foi buscar na Bíblia justificativas para isso. Segundo a interpretação de muitos clérigos, daquela época, os africanos seriam ora descendentes de Caim ora descendentes de Cam. Pela narrativa bíblica Caim foi, por sua ingratidão e por matar seu irmão, Abel, amaldiçoado por Deus, expulso do paraíso. Ainda, carregaria uma marca inconfundível do pecado. A Bíblia não diz que marca é essa. Logo os Clérigos passaram a defender que Caim teria ido para a África e a pele negra seria esta marca.
Em outra interpretação, os africanos seriam descendentes de Cam, filho de Noé. Pela narrativa bíblica, Cam teria visto seu pai nu, embriagado após beber vinho (Noé cultivava vinhas). Ao invés de cobri-lo, como dizia a tradição, teria rido e contado o episódio para seus irmãos. Mais tarde, ao descobrir o ocorrido, Noé expulsou Cam de seu lar, maldiçoando-o e a seus descendentes.
Na idade moderna, alguns clérigos, portanto, na ânsia de justificar a escravidão, passaram a defender que os filhos da África, apontada como novo lar de Cam, seriam, portanto, amaldiçoados. Mas, nestas justificativas, havia uma saída para o povo africano. Apenas a escravidão, uma vida de sacrifícios e resignação, seria capaz de redimi-lo. Nesta ótica, a escravidão era algo bom e não ruim para os africanos, uma vez que, somente por ela os escravos apagaram a “mancha” (“cor da pele”) do pecado. O Brasil, por exemplo, seria, nas palavras do Padre Antonio Vieira, o purgatório dos negros. Como o ato de purgar o açúcar, processo que tira suas impurezas, a escravidão purgaria os “pecados” dos negros, dando a eles a possibilidade de salvação e vida eterna.
Ora, isso não passa de “ideologia”, uma justificativa capaz de redimir a Igreja, daquele momento, do mal de permitir a escravidão. É preciso esclarecer que nem todos os clérigos aceitavam a escravidão, mas o posicionamento oficial da instituição prevaleceu.
A África não foi amaldiçoada por Noé (uma narrativa mitológica que deve ser compreendida em sua figuração, como ensinamento, alegoria). Nem este amaldiçoou os africanos. O que ocorreu foi que os homens, que estavam à frente das instituições, para defender os seus interesses, interpretaram a Bíblia da maneira como lhes convinha.
Não creio que Marco Feliciano acredita nisso, no que ele disse. Ele é uma pessoa esclarecida, apesar de seu posicionamento condenável. Creio que ele apenas foi buscar uma justificativa para o seu racismo.



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